Ensaio de Severino Ngoenha, Eva Trindade, Giverage do Amaral e Carlos Carvalho
É a segunda Páscoa consecutiva que se vive e se celebra ao ritmo do Covid-19, com as máscaras a remeter-nos para um carnaval que não foi e com a quaresma e a quarentena que se prolongam em todos os espaços geo-humanos e no tempo.
No ano passado (2020) a via-sacra ao Coliseu – o templo dos gladiadores romanos –, iniciada por João Paulo II, foi suspensa por força das circunstâncias; os famosos concertos pascais de Viena, onde outrora brilharam Pavarottis, Andreas Bocellis (…), foram substituídos por réquiens, não de Mozart, mas existenciais, no interior de muitas famílias, comunidades e países.
As verdadeiras procissões da Quaresma foram feitas pelas batas brancas dos muitos médicos a socorrer doentes e a carregar cadáveres (até pelas ruas das cidades), pelas sirenes das ambulâncias, e o ambiente geral marcado por cemitérios improvisados e até por valas comuns. A benção urbe et orbi soa, em tempo de Covid, como um sacrilégio.
Este ano (2021), apesar de se constatarem ainda muitos mortos, sobretudo em países de governos negacionistas (Trump, Bolsonaro e talvez também John Pombe Magufuli), nos países com quatro estações, se começa a vislumbrar um possível advento ‘real’ da Primavera (que marcou, historicamente, os momentos da celebração da páscoa pagã e judaica, cristianizado pelo concilio de Nicéa no século IV) e um ‘verdadeiro’ solstício de Verão. Os concertos de Viena e as bençãos papais, depois das galáxias Gutemberg (imprensa) e Marconi (rádio) serão mediados pelos Big datas (um dos grandes vencedores da pandemia), através dos quais passa, doravante, todo o verbatim mundi – com o perigo de interferência nas liberdades dos indivíduos e nos processos democráticos (Cambridge Analítica) – e até mesmo a benção de Deus – como se têm vindo a inquietar e denunciar muitos filósofos de orientações ideológicas diferentes – como Zizek e Agamben.
Entretanto, depois da ascendência vertiginosa dos Big datas, emergem, triunfantes, os Big Pharma – das indústrias farmacêuticas – que fazem da imunização os novos tempos soteriológicos, com muitos anjos (empresas) a se apressarem para anunciar a boa nova: a tumba está vazia – Resurrexit sicut dixit, Alleluia – e anunciam, para breve, o fim dos confinamentos, das distâncias sociais, da crise económica e do carnaval das máscaras…
Mas a salvação é para todos os homens, como defendia Paulo, ou é só para os judeus, como queria Pedro? Nas celebrações católicas, os santos são invocados cada um sozinho, mas Pedro (o judaista) e Paulo (o universalista), para evitar cismas entre ‘Paulinos’ e ‘Petrinos’, são invocados sempre juntos: São Pedro e São Paulo. Esta intenção ecuménica – de unir Pedro e Paulo – foi também anunciada, ao som de trombetas, no calvário da primavera de 2020: Covax (para garantir a 190 países um acesso justo e equilibrado das vacinas) e C-TAP (que deveria garantir a partilha da propriedade intelectual, os conhecimentos e saber fazer necessários para produzir a vacina em grande escala).
Quando os coelhos de Páscoa (cheios de chocolate suíço e belga) começaram a aparecer no feitiço marxiano do mercado, reapareceram os ‘Johns Lockes’ (indústrias farmacêuticas) a reivindicar direitos de propriedade (patentes) e os ‘Adams Smiths’ a defender a riqueza (prioridade e exclusividade) das nações.
As contrições e arrependimentos – pelos egoísmos, injustiças, privatizações, neoliberalismo – e os propósitos – de solidariedade, de fraternidade universal – da quaresma e da via sacra, ficaram nos confessionários e a realpolitik (pecuniocrática, nacionalista e comunitarista) retomaram os seus direitos. Países economicamente abastados, como demonstração da diferença do valor das vidas, encomendaram mais doses do que o número dos seus habitantes uber mensch (super-homens) de Nietzsche. Empresas privadas fazem estoques da vacina para revenderem a preços lucrativos, países inauguram o turismo vacinológico; elevam-se artificialmente os custos, manipulam-se os contratos e, consequentemente, mercantiliza-se a saúde e o direito à vida.
A luta entre os grandes produtores para homologação das vacinas, a maneira forreta e egoísta de comprar mais do que se necessita – a risco mesmo de privar os outros da salvação que, aliás, é a condição da salvação de todos – faz reemergir um pós- neoliberalismo ainda mais cruel e de ultra competição entre regimes político-econômicos (China, Rússia e o Ocidente) que transmuta a vacina em campo de batalha metafísica e ontológica sobre quem detém o direito à vida; e esta, a vida, ‘vira’ o business mais apetitoso e rentável desta primeira parte do século XXI. O saudoso filósofo moçambicano Mário Viegas diria que não é a crise da moral, mas a moral dos nossos tempos!
Neste sentido, existe o perigo da não catolicidade (universalidade) da Páscoa que milita a favor dos direitos à vida, e a ameaça de um possível eugenismo, secundado sob o pretexto dos constrangimentos ecológicos da defesa do ambiente e do imperativo malthusiano do controlo da população.
A salvação teve sempre um preço – no cristianismo é o arrependimento e a conversão. Porém, o preço que os vacinocratas exigem, não deixa o povo da Noémia de Sousa passar, porque não tem como pagar. Os pobres não têm como fazer páscoa (em hebraico, Pessach, quer dizer passar), como obter o passaporte que a União Europeia, doravante, distribui para os eleitos/vacinados; aos pobres só resta resignar-se à ditadura de Ramsés II e as pragas da miséria, guerras, corrupção, calamidades naturais, mudanças climáticas, contaminação. Somos todos iguais (humanos), mas alguns são mais iguais (humanos) do que outros (George Orwell).
Um dos maiores opróbrios de Cristo na cruz foi o escárnio dos judeus: “Tu que podias destruir o templo e reconstruí-lo em três dias, salva-te a ti mesmo”. Nós que lutámos sem desfalecimentos pelas nossas independências e liberdades, temos que ter sempre presente a advertência da voz – do velho escravo Booker Washington – que vinha de longe: o que as liberdades comportam como responsabilidade.
A nossa sobrevivência como pessoas, países e povos não podem depender da boa vontade de doadores – mais pandémicos que o Covid-19 – que induzem receios, dúvidas e cepticismos fundados, de vermos os nossos corpos negros transformados em terreno de testes ou verificação – como outrora, para os medicamentos contra a malária ou as operações de coração aberto – com responsabilidades jurídicas mínimas, mesmo no Ocidente, caso aparecessem efeitos secundários ou colaterais graves. Não é só uma reminiscência do passado, mas tem também a ver com os segredos que envolvem, entre outras, as experiências da Pfizer sobre mulheres grávidas na Manhiça.
Como dizia o filósofo e escritor romano Horácio, sapere aude: ousar buscar, por nós próprios, respostas e soluções para os problemas com que somos confrontados; produzir saber e tecnologia para fazer face às nossas pandemias actuais (ecológicas, económicas, políticas e militares) que se desdobram, à moda antiga e judaica, em dramáticos êxodos – não só de deslocados no norte de Moçambique, mas também de artistas, comerciantes e intelectuais – e prepararmo-nos para aquelas, de toda a natureza, que vão ocorrer no futuro; para isso – ad unum vertere – temos que convergir numa unidade contra todos os divisionismos, partitocratismos sem fundamentos axiológicos, ou até da pseudo sociedade civil contra o governo – no altar de interesses pecuniocráticos – que só enfraquecem o tecido nacional e dificultam a nossa imunização contra faraós, (mosa-canistas, internos e externos) e contra a dependência assumida.
Mesmo os Changues e os Nhangumelos desta vida, na verdade deixaram-se ludibriar pela sua ambição desmedida e pelo seu credulismo. A combinação explosiva, entre a ganância (corrupção) e a burrice, elevados à virtudes, infectam as nossas instituições e aumentam o nível de contágio das nossas pandemias (económica, política, militar, mudanças climáticas) e hoje do Covid 19. Para além da dimensão moral (mudança de valores) e política (separação e fortificação das nossas instituições), temos que apostar, a sério, na institucionalização do saber e conhecimento (científico/ sciere e técnico/tekne) não como meros diplomas, mas como verdadeiros valores sociais.
Djondzani ngopfu, Swi yentxo swa missava, Muta huluxa a ntiyisso – estudem muito as coisas do mundo para salvarem a Verdade – (José Mucavele, em, “Balada para as minhas filhas”).
Só nesta condição o povo pode celebrar a Páscoa (Paska –grego, Pascua-latim) isto é, passar, ter alimentos, e sobretudo alimentar a esperança.
