Um abraço a Moçambique!
Vivo, até hoje, no lugar onde nasci. É meia vida no interior do Brasil, cercada por mineradoras, barragens que perigam romper, pequenas propriedades rurais e também grandes agroindústrias. Seria um atrevimento meu dizer que sei a dor de moçambicanos atingidos pelo recente ciclone. Eu nunca vi um ciclone, nem fui a Beira nas vezes em que estive em Moçambique. Então, por mais que eu imagine a dor dos afetados pelo IDAI e me coloque no lugar deles ainda será atrevimento eu dizer que sei o que estão passando. Eu não sei. Mas me doem todas as notícias que me chegam sobre este ciclone e os estragos que deixou na cidade, nas pessoas. Serão gerações com as tristes memórias das águas e dos ventos a destroçar vidas. Experienciei diversidades em Moçambique e suponho que Beira seria (e será) outra face deste país que aprendi a amar, antes mesmo de pisar nas suas terras negras e arenosas, de sentir o abafado de sua capital, de me arrepiar com o memorial da escravatura na sua Ilha, de me encantar com os risos e os coloridos de suas mulheres.
Moçambique me foi chegando devagar, não veio a galope, nem vem fácil: há rompantes; há rompimentos; há rios de lágrimas de despedida; há risos fartos em amizades inesperadas; há um aconchegar-me como se ali fosse sempre meu lugar; há calor nos abraços e nas lágrimas; há um sem número de aprendizados em seus provérbios, em suas aldeias, em sua savana, em seus infantes debaixo de cajueiros, em homens e mulheres enfileirados andantes em caminhos de chão entre cabritos e crianças e verduras à venda; há mercados lotados; há cheiro de gente nos chapas e nos myloves; há gente sentada ao chão vendendo coisas ou conversando na Baixa; há modistas que costuram vidas nas capulanas, onde desfilam bonitezas ímpares; há vidas tecendo machambas ao sol; há caniços e há cimentos; há o belo Tunduro; há poetas com quem se pode papear sem agendamentos; há topônimos que reverenciam a luta pela libertação.
Em mim fervilha uma imensidão de felicidade sempre que Moçambique me vem à mente: seja Inhambane, Madendere, Chokwe, Ilha de Moçambique, Matola, Katembe, Nampula ou Maputo, Chocas Mar ou Tofo; sejam as fachadas na Baixa marcadas pelos embates históricos, as crianças agregadas às mães; os roletes de cana ou as maçarocas assadas, vendidas no fim da tarde nas calçadas. As machambas não têm cercas e cada qual sabe o que lhe pertence e hortaliças se estendem por todo lugar. Ali, alimentos têm gostos de muito antigamente, de como os que eram colhidos nas roças no Brasil. O pôr do sol em Moçambique é sempre de uma grandeza divina. O Índico está ali, fornecendo o peixe do mercado, fertilizando as terras, chacoalhando seus fortes e suas fortalezas.
Moçambique deve ser conhecido pelo mundo, sobretudo por brasileiros. Entende-se muito do que somos quando se vai a Moçambique: nossas peles, nossas ancas, nossos cabelos, nossas comidas, nosso gosto de conversar sem se dar conta do tempo, nossa alegria colorida, nossos deuses, nossos medos, nossos ais, nosso passado, nossas fés, nossas tragédias sociais, nossas riquezas – muito do que somos ecoa em Moçambique. Muito de Moçambique ecoa em nós brasileiros.
Por estes encontros com as gentes moçambicanas e pelas margens que o tempo ainda há de nos reservar, eu voltarei um dia a Moçambique. Eu quero pisar novamente nas suas aldeias, nas suas praias, sentir sua Impala ou Laurentina, rever meus “tios” e as pessoas de cura com seus cajados, em seus espaços de regras da fé. Eu ainda hei de conhecer Beira, Sofala, Manica. Chorarei com os órfãos de lá e os que perderam suas famílias. Mas esperanço também sorrir e fortalecer minha fé com os que lutam a cada dia, superando medos e tristezas, depois que o vento e a chuva e o mar arrastaram vidas para sonambulá-las nas lonjuras do além.
Que as lutas históricas do povo moçambicano sejam sempre a lembrança que encoraje as famílias devastadas a acreditar que os dias futuros tornarão o vazio do IDAI uma memória cada vez mais longe. De longe, com tristeza e saudade, eu abraço Moçambique.
Por: Profª. Dra. Maria Helena de Paula