Jornalismo ao pormenor

Sobre a Chama da Unidade Nacional ou a urgência de uma catarse nacional

Por: Tomás Vieira Mário

O Presidente da República, Daniel Chapo, lançou, esta Segunda-Feira, dia 7 de Abril, a Chama da Unidade Nacional, que é uma tocha ou archote, uma fonte luminosa, originalmente usada para iluminar zonas escuras ou mostrar caminho em zonas sem iluminação. Portanto a Chama da Unidade Nacional transporta consigo simbolicamente a luz mostrando o caminho da Unidade Nacional.

A ideia da Chama da Unidade Nacional é colhida pela FRELIMO (Frente de Libertação Nacional) na República Unida da Tanzânia, aonde a Frente esteve sediada, durante a luta armada contra o colonialismo português.

Na Tanzânia este evento simbólico leva a designação de Tocha da Liberdade e Unidade Nacional, um legado do fundador do Estado Tanzaniano, o Presidente Julius Nyerere, e institucionalizado para simbolizar a liberdade e a unidade do povo tanzaniano, alargadas com a fusão entre o Tanganyka e a Ilha do Zanzibar, que constituíram a República Unida da Tanzânia, a partir de Abril de 1964.

Assim, ao lado da bandeira nacional, do hino e da figura do Presidente da República, a Tocha da Liberdade e Unidade Nacional é considerado um dos símbolos do Estado tanzaniano.

É assim que, inspirada pela visão e estratégia de construção de Nação, do Mwalimu Nyerere, ele que tinha transformado o seu país em sede dos movimentos de libertação nacional de toda a Africa Austral, a Frente de Libertação de Moçambique vai adoptar a Chama da Unidade Nacional, lançando-a exactamente no dia 07 de Junho de 1975.

A Chama ia então percorrer o país e chegar no dia 25 de Junho na capital do País e, mais exactamente, no mítico Estádio da Machava, local onde, à meia noite, o Presidente Samora Machel iria proclamar a independia nacional.

Antecedendo a Tocha, o Presidente Samora Machel tinha feito a histórica “viagem triunfal”, do Rovuma ao Maputo.

Nesse período empolgante e de muita euforia pela independência conquistada, o percurso da “Chama” e a viagem do Presidente da FRELIMO vinham carregados de profundo simbolismo, transmitindo e mobilizando a todos moçambicanos no sentido da sua mensagem principal: a Unidade Nacional!

Essa expressão, ”Unidade Nacional”, tinha, então, um sentido verdadeiro; ele era quase um objecto material, quase tangível.

Os moçambicanos, todos, sabiam qual era o conteúdo dessa expressão; sabiam que factores o sustentavam: a Unidade Nacional tinha permitido à Frente lutar eficazmente contra o colonialismo português e o seu novo foco era o acolhimento da independência nacional, pejada de uma arrebatadora promessa: a promessa de autodeterminação, condição primária para a reconquista da dignidade; a promessa de desenvolver juntos a nova Nação, num sistema de justiça e igualdade.

Desde o golpe militar que derrubou o regime fascista-colonialista em Portugal em Abril de 1974, que todo o país recebia dos combatentes essa mensagem quase messiânica.

As nacionalizações de sectores críticos como a saúde e a educação, um mês depois da proclamação da independência nacional, a 24 de Julho de 1975, seriam os primeiros sinais de cumprimento da promessa.

Mas cedo chegaria a guerra. E como toda a guerra, a nossa veio com tudo: com massacres e destruição das parcas infraestruturas económicas que tinham restado da sabotagem colonialista. Mas foi sobretudo a destruição daquelas promessas de Junho que se consumou.

As liberdades civis minguaram. A humilhação incluiu indignidades legais como a aprovação e aplicação de leis de chicotadas; as operações “tira camisa”, levando desorganizadamente jovens para a guerra; as deportações forçadas para terras inóspitas falando outras línguas.

O que passou, então, a unir-nos? A inevitável, mas “mera” partilha de um mesmo espaço territorial. E muito sangue.

Em 1986, para culminar, caiu a noite em Mbuzini: a morte do Presidente Samora Machel veio simbolizar, enfim, a tragédia que Moçambique se tinha tornado. Chama da Unidade Nacional? Não haveria nem picada por onde leva-la!

Veio Roma; veio algum fim daquela guerra. Porque, tal como nos disseram mais de 20 anos depois, aqueles Acordos de Paz de Roma afinal eram ainda provisórios: ainda viriam os Acordos de Paz Definitiva!

Mas ainda assim…foi chovendo, aqui e acolá. E alguma nova esperança germinando, no intervalo entre tiros quinquenais. Veio alguma colheita: vimo-la passando, pela nossa frente, como dividendos daquela paz…provisória. Mas só a vimos passar!

E aos poucos e poucos, foi-se abrindo entre nós um fosso, uma cratera lunar, separando os que olham para si próprios e vêm pessoas mais espertos do que o povo.

E o glorioso Partido que outrora nos mobilizou e embalou em sonhos…ele se transfigurou: doravante, quem dele não seja membro… o problema é dele! “Nossos problemas”? Não mais! Os problemas…são de cada um! Até porque a pobreza era, afinal, um problema mental! E cada qual resolve os seus problemas com os meios ao seu dispor: Está no Estado? Está no Governo? Está na Assembleia da República? Resolve aí mesmo os seus “problemas”! Determina, você mesmo, o seu salário e correspondentes regalias! Doa a quem doer!

A Unidade Nacional há já muito que se reduzira a mero cliché político, usado oportunisticamente para transmitir determinadas mensagens. Mesmo porque já se fala de moçambicanos…de gema! De que seriam os outros feitos?

E ainda há períodos em que somos convocados às urnas: na véspera seremos povo consciente; pacífico e disciplinado, mas podemos, no dia seguinte, acordar transfigurados, assumindo as características de povos primitivos, movidos por instintos de violência gratuita. Exactamente como aqueles bestas que invadiram e destruíram selvaticamente a Roma culta já lá vão muitos séculos: os vândalos!

Chama da Unidade Nacional? Em 2015, o antigo Chefe do Estado, Filipe Nyusi, efectuou o lançamento deste artefacto, em Nametil, distrito de Mueda, com apelos a todos os moçambicanos para a união, convivência e tolerância.

Porém, não há qualquer evidência de que tal mensagem tenha encontrado qualquer eco, mesmo em sede de instituições do Estado: pelo contrário, a intolerância (perpetrada ou tolerada por agentes do Estado) ter-se-á agravado, incluindo com a emergência, pela primeira vez, de grupos paramilitares com missões de natureza inominável, a que vozes combatentes do calibre de Alice Mabote denominaram de “esquadrões da morte”.

Ora, qual pode ser hoje, o conteúdo da nossa Unidade Nacional? Que factores sustentam hoje a nossa Unidade Nacional? Que valores ,nós moçambicanos, partilharmos verdadeiramente?

A nossa classe política tem alguma resposta a estas perguntas? O que faria o habitante de Metangula sentir-se unido ao habitante de Chicualacuala?

Porque, ao longo do seu percurso, a Chama da Unidade Nacional deve sustentar-se por mensagens carregadas de valores, princípios e crenças que o povo partilhe como sustentáculos da sua unidade, isto é, bases de sustentação da Nação.

Hoje por hoje, se a Chama da Unidade Nacional pode transportar consigo algum valor simbólico, passível de ser partilhado por todos os moçambicanos, tal valor só pode ser um e único: recordar-nos que estamos profundamente divididos e precisamos, com urgência, de construir novas pontes , feitas não só de discursos – por eloquentes que sejam – mas de actos redentores, de actos transformadores, que possam resgatar a confiança dos moçambicanos aos discursos políticos e a promessas de unidade, de diálogo…. Com base em valores como justiça, igualdade e dignidade.

Só com honestidade e franqueza poderemos encontrar as pedras que perdemos, para reerguer, com coragem, as pontes de Unidade Nacional que fomos derrubando, sobretudo ao longo dos últimos 30 anos da nossa História. Urge uma catarse nacional!

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