O juiz é suposto fazer justiça. O problema é que estamos todos de acordo sobre a premissa de partida de que o juiz faz justiça, mas nunca nos interrogamos fundamentalmente sobre o que é que significa fazer justiça. Se a gente olha para a história da iconografia: representação daquilo que é a justiça desde a época Grega com Tenerson até chegarmos às últimas representações, as americanas e francesas, as representações de Aden, ou do Himalaia/Egípcio o que nós temos… se vocês olharem para a Praça da Independência, a antiga Mac Mahon, vocês têm lá a figura da Minerva no centro, uma estátua enorme, senhora grande, com uma espada a tentar cortar.
Nós entendemos o direito à justiça como aquele que separa as águas, o trigo do joio, o bem do mal, que corta, que divide, que separa. Mas essa ideia da justiça, como separadora de águas ligada a todas as iconografias e representações é continuada, mas ao mesmo tempo desmentida pela teoriorização histórica do que o Direito é. Se eu pego em dois extremos que todos conhecemos, a esquerda, Aristóteles e, ao meu lado direito, pegar o Jean Jacques Rousseau para não falar de Kant, de toda uma série de teorizadores que tiveram de confrontar uma definição de Justiça uma espécie de paradoxo.
Para Aristóteles, justiça significa militar para a realização do bem comum. Eu só sou justo, só milito para a justiça e o juiz é chamado a julgar as minhas acções em função da realização ou não daquilo que é o bem da comunidade.
Se eu pego em Jacques Rousseau, que escreveu em 1971 quando a Filosofia Política tinha completamente desaparecido no marco das ciências sociais, ele reabilita a Filosofia Política. Jacques Rousseau no princípio da justiça fala de regras, diz que é preciso que nos metamos de acordo sobre as regras que têm que nortear o nosso viver em comum. Nós temos que concordar que estas regras são justas e a partir do momento que concordamos sobre as regras, vamos julgar o comportamento de uns e de outros em função das regras que todos concordamos.De um lado, justiça como substrato comunitário para julgar as pessoas do indivíduo, de outro, estabelecimento de regras através das quais vamos poder julgar as mesmas acções do indivíduo.
Eu tenho para mim, a [teoria] do Severenismo e como tal não vale muito, que a justiça não tem nada a ver com aquilo a que a Iconografia nos ensinou. A justiça não é separar águas, não é julgar para puder fazer a distinção ou a diversificação entre o bem e o mal. Eu tenho uma definição da justiça que é muito minha. Eu continuo a pensar que a Justiça é uma mulher, que se reza no feminino. Mas, contrariamente, as teorias tradicionais da justiça que são favoráveis à separação, eu defendo a ideia da justiça como uma mulher costureira.
O que é que faz uma costureira? Uma mulher costureira pega em si no disperso, com muita simplicidade, paciência, abnegação cose fio a fio para fazer com que uma camisola, um tecido, tecido social, comunidade – quer dizer partilha com os outros, seja possível.
Então, para mim, Justiça não reside no acto de separar, mas no acto de juntar; não reside no acto de condenar, mas no acto de trazer o condenado para um processo de reconciliação; o que a gente chama Justiça Retroactiva; não reside no acto de separar o trigo e o joio, mas fazer com que uns e outros possam de novo militar a um convívio comum.
Isso me parece da tese que coloco que é o substrato primeiro daquilo que conota ou deve conotar a justiça.
A questão é: como recoser tecido social? Vocês sabem que a palavra logo em inglês quer dizer junta. Quer dizer loguim e só se junta o que está separado. Como fazer com que a acção da justiça seja uma acção de logos? Seja pegar em fios dispersos, aquilo que é separado, para coser e fazer o tecido comum. Como o trabalho de abnegação é possível para fazer com que aquilo que parece estar destinado a criar confusão e conflito no viver em comum seja retransformado em alguma coisa que permite uma qualidade social? Esse é um grande desafio que somos confrontados.
Nós podemos ir ao tribunal, as comunidades, ter problemas; podemos ser obrigados a fazer o que quer que seja, mas o espírito que se esconde por trás da sentença que fazemos não é a condenação de seja quem for, não é a separação de seja o que for, mas é retrazer aquilo que é disperso para fazer a comunidade. Nós só separamos para criar condições para que o separado possa voltar ao espectro de unidade. Quando não fazemos isso, fazemos justiça traindo o espírito da justiça. E trair o espírito da justiça nunca pode ser fazer justiça.
E como é que nós fazemos o processo de recoser, o processo de logos? Como é que nós fazemos o processo de mobilizar o disperso para fazer o único e o separado. Nós para isso fazemos regras. O que é que são as regras? Quando nós fazemos as regras o que é que estamos a fazer? Quando estamos a fazer as regras não estamos a fazer nada mais, nada menos do que criar os pressupostos que fazem com que todos possamos ter o campo dos possíveis em termos de dever e quando nós criamos proibições não é para impelir ou impedir as liberdades dos indivíduos, é para fazer com que aquele espaço dos possíveis que me é próprio não entre em choque com as possibilidades dos indivíduos, sobretudo os mais fracos.
Só há direito justo, só a justiça quando o direito milita na defesa dos mais fracos. As regras são feitas para termos parâmetros que nos permitam espaço de liberdade que não seja apenas exclusivos para nós, mas que permita também que os outros tenham espaços de manobra, sobretudo aqueles que não têm condições de fazer.
Mas como é que nós fazemos as regras? Aqui entra a relação entre a moral e o direito. Moral é como nós vivemos. Todas as comunidades têm regras e comportamentos; têm práticas culturais, práticas sociais é o que nós chamamos de moral. O direito só surge quando a moral não consegue exaurir a necessidade de convivência social a partir de princípio de virtude. Quando nós não temos virtude suficiente para vivermos sem termos regras impostas ao nível do que chamamos direito positivo nós recorremos ao direito. Então, o direito é já em si uma falha. É porque a moral não consegue trazer-nos uma convivência comum e civil que temos que recorrer a um artefacto que chamamos direito. Porém, para que o direito possa recorrer as prerrogativas morais sem romper com elas ela deve estar inscrita, inscrita na maneira como as pessoas se autorepresentam e representam a sua vida em comum.
É nesse sentido que dizia na minha introdução que um dos grandes problemas do direito moçambicano é que ela relega aquilo que vocês tecnicamente chamam de a transferência jurídica. Nós vivemos um direito que não é nosso. Que não resulta a maneira como nós vivemos os nossos problemas. As constituições e as leis são respostas filosóficas, políticas, jurídicas que um grupo e uma sociedade dão num determinado momento da sua História. Quando nós pegamos Nietzsche e transferimos noutras latitudes, longe de resolver problemas nós criamos novos problemas. Nesse sentido o nosso direito está em discrepância com a realidade social. Então ela se cose, muitas vezes não de soluções, mas de problemas.
Vou passar muito rapidamente a coisas mais práticas.
Se agente olha para a estrutura do espírito das leis como existiu e existe em Moçambique, nós podemos constatar duas coisas muito rapidamente. O que é que nós fizemos? Nós, em 1975, tínhamos uma Constituição. Se eu perguntasse como filósofo ou se me inspirasse em Montesquieu e me interessasse menos das normas, das regras e fosse a busca do espírito das leis o que é que eu podia concluir? É que a primeira República proclamado por Samora Machel, em 1975, começa com um discurso, todos conhecem: Moçambicanas, moçambicanos, operários e camponeses, combatentes… todos conhecem esse discurso. Esse discurso foi pronunciado em primeiro lugar por Eduardo Mondlane. Só que Eduardo Mondlane conclui o discurso dizendo: insurreição armada do povo moçambicano. Samora Machel termina o mesmo discurso dizendo: proclamação da independência total e completa de Moçambique.
Então, o espírito desta república, a primeira república que na realidade nasce com insurreição de 1972 é um espírito libertário. O objectivo era a conquista da independência que Machel chamou total e completa de Moçambique. O espírito da segunda República nasce da Guerra, do conflito interno, dos 16 anos que destruiu infra-estruturas nacional, destruiu as comunidades e mataram muita gente. O espírito da segunda república era sair do espectro do conflito para remarmos em direcção ao Moçambique de paz, privilégios. E nós escolhemos como instrumentos para chegarmos a esse objectivo a abertura democrática.
Dizemos que legalizamos a Renamo e por trás da Renamo abrimos espaço para que novos partidos pudessem existir. Abrimos espaços para que organizações da sociedade civil pudessem existir. Criamos as universidades privadas da qual sou o reitor de uma delas. Abrimos espaço para que as creches e as igrejas… quer dizer, o espaço público deixou de ser prerrogativa exclusiva do partido que até então governava Moçambique e passou a ser um espaço aberto para todas as pessoas, sobretudo para outros grupos. Para muitos, outras dinâmicas, para muitos outros valores. Mas mais do que esses muitos valores havia um valor Paz, Liberdade e por consequência a Democracia.
O espírito da segunda república é um espírito de paz, de reconciliação… o que nós buscamos, quando alguém diz espírito é porque estamos a propor… o que nós buscamos na segunda república, contrariamente a primeira que era libertária, é a paz, a reconciliação e a democracia era um meio, eram as regras que nós pusemos para atingir o objectivo a que nos propusemos. Para chegarmos a esse objectivo tínhamos dois procedimentos a aplicar. O primeiro era deconstrutivo. O segundo era construtivo ou de reinvenção.
O que era deconstrutivo? É que para nós conseguirmos criar democracia tínhamos que desconstruir tudo aquilo que na primeira República podia ser contrária a democracia. Por exemplo: o Infeudamento do judiciário ao político, a promiscuidade entre o poder que relega de soberania. Na primeira república isto ia por si mesmo, estamos num sistema monopartidário em que quem fazia as leis… à nível da república impunha ao parlamento, e subalternizava o direito. A segunda República para poder ser democrática naquilo que na vossa linguagem e não a minha chamam de Estado de Direito, era suposto fazer todos os dois poderes. Não é simplesmente nominar poderes diferentes, distintos mas prerrogativas da autonomia para que elas fossem capazes no espírito de Montesquieu no jogo de equilíbrios fazer com que uns contornassem acção de outros como condição para a democracia.
Senhores, falhamos.
A nossa República, apesar do esforço que possa ter feito, desde assinatura dos Acordos de Paz e a Constituição da segunda República nós não… não conseguimos? Não estamos a conseguir? Ou ainda não conseguimos? Deixo a vossa escolha. Mas de facto a promiscuidade entre os poderes e a subalternidade de uns em relação aos outros continua presente. E esse é o esforço que tem que ser feito. Aqui ainda não conseguimos mas isso é uma batalha que temos que levar à cabo.
Mas há um segundo elemento que aconteceu na passagem da primeira a segunda República. Eu estava a vir agora. E depois da portagem cheguei ali para virar à direita. E ali o grande perigo quando há rotundas é agente virar e em vez de pegar a primeira saída e aquela que nos leva para o lugar onde queremos ir, pegarmos uma outra. E o que nós fizemos foi exactamente isso.
Nós chegamos na curva, os acordos de paz e a Constituição da Segunda República dizia que tínhamos que ir para a paz e para irmos para a paz tínhamos que começar pela democracia e o que nós fizemos foi desviar na curva que se chamava individualismo e não entramos na curva que dizia democracia. Na rotunda que nós estávamos falhamos a saída. Nós não entramos na democracia. É por isso mesmo que toda aquela prerrogativa democrática que era suposto realizar foram ficando subalternizadas pelas estradas que nós empreendemos.
As práticas que constatámos e que constituem essencial do diálogo e debate que nós realizamos têm a ver com o falhanço na saída quando chegamos a rotunda. Vocês depois podem enumerá-las. Vocês depois podem dizer assim: aquele roubou, enganou… tudo isto tem a ver com o falhanço na saída. É que nós não saímos em direcção a democracia. Democracia significa que todos nos libertamos para pudermos todos juntos governar aquilo que pertence a todos e a cada um de nós.
No espírito moderno, quando a modernidade começou a primeira coisa que se fez no século XV, XVI e XVII foi libertar os indivíduos das religiões, de pertença as famílias, de pertença as raças o objectivo era libertar os indivíduos para que indivíduos livres pudessem juntos submeter, o chamado contrato social, para que juntos pudessem governar. O que nós fizemos, uma vez mais, fomos na rodunda, enganamo-nos na saída que nos leva aos indivíduos. Indivíduos que Maquiavel diria os fins justificam os meios.
Se o fim é a realização dos meus objectivos individuais estou pronto a sacrificar tudo e todos para aquilo que são os meus objectivos. Matar, enganar, esfolar tudo vale. A única coisa que conta é a realização daquilo que sãos meus objectivos individuais.
Senhores, justiça significa recoser os tecidos sociais, então eu posso começar a concluir muito rapidamente é que o que nós tínhamos que começar a fazer, é fazer marcha-atrás, voltar a rotunda e pegar a estrada justa que nos leva ao viver em comum. Então a justiça é o recuar a rotunda e o recoser todos e tudo aquilo que nós somos para nos levar a estrada daquilo que é a estrada justa do viver em comum. Então as punições de um e do outro, a cadeia de um e do outro, que seja na África do Sul, nos Estados Unidos da América, em Moçambique é um episódio. Não é o essencial. Ninguém de nós pode fazer festa porque o outro está na cadeia. Estamos a ser pequeninos. O único objectivo da justiça, do viver em comum, de logos é reunir aquilo que está disperso, é dizer que nós conduzimos numa estrada errada.
Temos que recuar. Atenção. Quando você entra numa estrada errada nos países que têm uma estrada longa de vez em quando tem que ir até lá no fundo para encontrar outra rotunda. E a sua gasolina é pequena, é pouca. E você hoje não tem Saddam Hussein no Iraque que nos davam gasolina gratuita. Quem vai dar a gasolina? Os americanos, os chineses, os franceses? O que vão pedir em troca? Então nós, nessa adversidade, temos que voltar para a rotunda, e da rotunda retomar a estrada que é a estrada da justiça, da democracia, o espírito da segunda república que é garante total, garante de não-violência, garante da ‘’convivielidade’’ de todos.
Eu tentei dizer que me parece que o essencial da justiça não sejam aplicação de regras, a punição, remeter os carris do desviante através de prisões. Me parece que o essencial do espírito da justiça, se justiça significa recoser os tecidos sociais, é uma interrogação mais fundamental: o que fazer para o represtino, quase aristotélico, do bem comum como categoria essencial do nosso viver em colectivo. O essencial é, como recuar da estrada que tomamos que claramente nos leva ao desfazamento do tecido social. Nós nunca tivemos um tecido social tão fragmentado e fragmentário como temos hoje. Nós nunca tivemos uma sociedade socialmente tão violenta como temos hoje, nós nunca tivemos tanta animosidade nas pessoas como temos hoje.
Nós nunca tivemos práticas contrastantes uns contra os outros como temos hoje. Sobretudo não conseguimos realizar o espírito que nós mesmo decidimos. Paz, reconciliação e não-violência como características de viver em comum. Então se justiça é recoser o tecido social, se a arte da justiça é essa mulher, que com muita tenacidade, paciência, abnegação pega fios dispersos para coser para uma moçambicanidade fraternal e solidária seja possível a punição para que as senhoras e senhores possam fazer a um desviante social são a mínima parte, mas sobretudo tem que ser subalternizada a uma questão mais fundamental: em que medida é que a minha acção como decisor participa na acção de recoser aquele tecido social que é constituinte do nosso viver em comum, em outras palavras, da nossa moçambicanidade.
(Severino Ngoenha, falava, num passado recente no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ), na Matola, em torno de ‘’O que é Justiça.’’ Transcrição de Nelson Marqueza)