Jornalismo ao pormenor

O PRINCÍPIO (DA) RESPONSABILIDADE

Por: Severino Ngoenha, Geveraz Amaral, Thomas Kelssering, Eva Trindade

Faz já quase meio século (1979) que o filósofo Hans Jonas formulou, no seu livro “Prinzip Verantwortung”, o imperativo de: “Não pôr em perigo as condições para a sobrevivência indefinida da humanidade na Terra”. Jonas estabeleceu este princípio como advertência contra a exploração dos pobres pelos ricos, por um lado, e a destruição acelerada da natureza, por outro. Nesse final dos anos setenta do Sec. XX avisou que a emissão excessiva de gases com efeito de estufa (CO2 e metano) conduziria a um aquecimento global que colocaria a humanidade numa situação difícil.

Desde há alguns meses a humanidade, de uma maneira ecuménica, está sucumbindo ao Corona-vírus (Covid-19). Esta pandemia levou-nos a questionar coisas que nos pareciam óbvias e dados adquiridos pela globalização liberal, como o intercâmbio intenso de matérias-primas e mercadorias através de fronteiras continentais, além do turismo internacional,  por terem estimulado e disseminado mundialmente o vírus.

Em muitos países, os serviços de saúde estão sobrecarregados e as pessoas pobres não têm acesso a eles. Isso não é, in primis, culpa do vírus, mas das políticas neoliberais que preteriram a saúde pública e usaram os meios financeiros para proteger e reforçar os privilégios dos ricos.

Um vírus invisivelmente pequeno causa uma crise mundial. Ainda não sabemos exactamente como o vírus funciona, apesar de meses de investigação intensiva em muitos dos principais laboratórios do mundo. O orgulho da ciência moderna está quebrado. O vírus nos chama a despertar. Ele nos lembra que o sucesso da ciência não é tão certo como gostaríamos de acreditar. No entanto, o processo que a pandemia ilustra não é completamente novo. A ordem política e económica mundiais desde há decénios manifestam riscos e incertezas crescentes de ordem política, tecnológica, económica e, até, científica.

A base essencial da hegemonia-mundo do Ocidente desde o Se. XVIII foi a “Trindade” ‘ciência, tecnologia e economia capitalista’. O princípio da responsabilidade que Jonas nos recomenda refere-se a todos eles.

Mediante a combinação da matemática e da experimentação criou-se, no Sec. XVII, a Física moderna e mais tarde a Química. O sucesso das ciências naturais levou à matematização de outras áreas, em especial da Economia. O homem moderno é entusiasta não só de dominar e subjugar a natureza (Prometeu!), mas também de descrever os processos de crescimento, inclusive do crescimento da economia, na língua ‘matemática’. Ele aprendeu a representar o mundo em números, a traduzir todos os tipos de bens e serviços em valores monetários, que por sua vez se expressam em números. Todos os possíveis processos de crescimento e aumento são ilustrados com cifras. O sempre mais, sempre maior e sempre mais poderoso tornou-se um fetiche. Actualmente, o póquer com números, nos mercados financeiros, influencia a actividade económica em todo o mundo.

Paralelamente à ascensão das ciências naturais e da economia de mercado, a democracia moderna ganhou corpo. A ideia básica da democracia é que não apenas alguns decidam, mas que nos processos de decisão todos os afectados devem ser envolvidos. A democracia também implica que os direitos básicos elementares (direitos humanos) são igualmente garantidos para todos os cidadãos. Democracia e igualdade dentro do País, esse era o lema. Cada vez mais países assumiram estruturas estatais democráticas, mas a igualdade não foi concretizada em parte alguma. E do lado de fora, o colonialismo, a exploração e a destruição da natureza continuaram sendo praticadas, até hoje. Por isso Léonce Ndikumana e James K. Boyce puderam dizer (e como demonstram as nossas dividas ocultas) que, na realidade, os países africanos são os credores dos países ricos e não o contrário.

Nos Estados Unidos,  que adoptaram uma das primeiras democracias, hoje são os mais ricos (oligoi = os poucos, contra cujo regime – oligarquia – já Platão e Aristóteles nos advertiam) que decidem e mandam . Não determina quem tem os melhores argumentos, mas quem dispõe da maior influência que, em muitos casos, quer dizer maior poder financeiro. Como consequência, os afro-americanos, os hispânicos e os brancos pobres são em grande parte excluídos e, hoje, com o vírus, afastados até da possibilidade de sobrevivência: o princípio survival of the fittest, afirmado por Herbert Spencer no Sec. XIX, retomado pela sociobiologia no Sec. XX e hoje por aqueles que defendem a imunização comunitária (Boris Jonhson, Trumph, Bolsanaro) está hoje em foco…

O Corona não é o primeiro fenómeno a criar incerteza, mas talvez entre na história como a “marca registada” da era da grande incerteza. Pois não é apenas a democracia, mas também a “trindade” (da tecnologia, economia e ciência) que manifesta os seus limites.

A tecnologia não só tornou as pessoas mais fortes e autoconfiantes como também criou uma série de novos riscos, anteriormente desconhecidos. A engenharia genética está a criar, também, uma nova insegurança: ninguém pode garantir que os laboratórios genéticos não produzam organismos prejudiciais, seja de propósito, como armas biológicas, seja involuntariamente, uma vez que as consequências da produção técnica poderão não ser totalmente controladas.

As tecnologias da Internet se demostram paradoxais. De um lado revolucionaram a comunicação e ajudaram a melhorar a vida em todo o mundo mas, do outro, permitem também monitorar e manipular os cidadãos, interferir em processos democráticos em qualquer ponto do planeta, e criam novas formas de roubo e terror, o cybercrime, onde indivíduos, empresas, governos, insurgentes, grupos terroristas, podem monitorar, manipular e cometer actos criminosos. Com a nossa tecnologia, então, não só criámos milagres como também criámos riscos antes desconhecidos que agora ofuscam os benefícios do progresso tecnológico.

A economia capitalista de mercado e a sua globalização pareciam, à primeira vista, ser benéficas, uma vez que em muitos países – China, Índia, Brasil – tiraram centenas de milhões de pessoas da pobreza absoluta. Na realidade, e contra a sua promessa, a economia capitalista de mercado não erradicou a pobreza; pelo contrário, criou mecanismos para excluir, marginalizar e empurrar para o abismo um grande número de pessoas, os pobres, das vantagens da economia de mercado. Para piorar, o capitalismo criou os chamados mercados financeiros que, na verdade, não são mercados, mas megamáquinas que transferem recursos dos pobres para os ricos, contribuindo para que uns  fiquem cada vez mais ricos e os outros cada vez mais pobres.

A ciência, por sua vez, ajudou a elevar o nível de prosperidade, mas ao mesmo tempo desencantou o mundo e desqualificou muito daquilo em que as gerações anteriores basearam as suas crenças: em simultâneo aumentou o perigo de ver realizada a profecia de Nietzsche, isto é, o advento do que ele previu, com rara clareza, para o futuro – o niilismo. Entretanto, a ciência vai perdendo o seu pedestal e,  como outrora  as autoridades religiosas, a sua infalibilidade.

Além do mais, a actividade científica está hoje afectada pelas leis do mercado. Até na procura de uma vacina contra uma pandemia que ainda não se sabe como controlar, o que prima é a competição para a fama e, sobretudo, para o lucro.

A pandemia de Covid-19 lança uma luz brilhante sobre todos os riscos e incertezas pós-modernos. O facto de a ciência não poder atender às expectativas de milhões de pessoas de ter, em breve, acesso a uma vacina infalível contra o vírus, ainda é o menor problema . Mais importante é que o Covid-19 questiona o auto-evidente estabelecido e torna-nos conscientes dos limites da ciência, tecnologia e economia.  

O Covid-19 é, por um lado, um inimigo desconhecido que ameaça todo o ser humano, um inimigo cujas estratégias ninguém conhece e que nos desafia para tomar medidas que sobrecarregam os recursos económicos de qualquer país. Quanto mais pobre é um país mais difícil é a sua luta contra esse inimigo. Por outro lado, o vírus pode ser visto como uma placa de sinalização:  adverte-nos para não continuarmos a reprimir e destruir a natureza, pois é provável que o vírus se tenha propagado de uma espécie animal para os seres humanos, depois de eles terem destruido partes crescentes do seu habitat.  O Covid-19 nos ensina também que faríamos melhor em cooperar dentro dos países e entre eles do que em lutar uns contra os outros e explorar os mais fracos.

Finalmente, o vírus nos lembra que um governo é responsável pela saúde e o bem-estar de toda a sua população e que prejudica a sociedade se trabalha apenas para preservar o seu poder e para enriquecer a sua camarilha. O vírus mata o maior número de vítimas onde os governos há muito ignoram os riscos da pandemia, menosprezam o perigo, não se importam com a verdade e desprezam os pobres. Por isso o Covid-19 exorta-nos a não desistir da distinção entre verdadeiro e falso. Além disso, a pandemia torna todas as pessoas, independentemente da nacionalidade e da condição social, conscientes de que a vida e a saúde são mais importantes do que o crescimento do lucro privado ou o produto nacional bruto.

O perigo de um retorno à normalidade, com vencedores – e derrotados – já se desenha. A Amazon, a Google e outros líderes no campo da comunicação online (Zooms -Eric Yuan-, Skype -Microsoft Corporation-, Google -Alphabet inc.-, Facebook inc. e Whatsap -Mark Zuckerberg-)  já estão entre os vencedores; as empresas que estão a desenvolver programas de rastreio de contactos a serem utilizados para identificar as pessoas que um sujeito testado com resultado positivo poderia ter infectado estão em vias de se tornarem mais importantes e mais influentes; Blackrock, uma das maiores empresas financeiras do mundo, que aconselha os bancos estatais dos EUA e da UE sobre como devem apoiar, com pacotes de ajuda financeira, os actores económicos prejudicados pela pandemia tornou-se nesse gigante a partir da ameaça viral que pesa sobre todo o planeta; ou ainda as empresas farmacêuticas que primeiro desenvolverem, com sucesso, uma vacina.

As decisões democráticas devem estar abertas ao discurso. Um pré-requisito essencial para isso é a transparência. Os Governos que têm muito a esconder estão a prejudicar a democracia. Quanto mais centros de poder forem privatizados (os vencedores listados são todos empresas privadas), maior é o perigo de não transparência em torno de decisões políticas e económicas. A restrição da liberdade dos media também reduz a transparência e torna o debate público mais difícil. Até agora a pandemia parece ter encorajado ditaduras, regimes autocráticos e actores globais privados. Também a este respeito, o imperativo de responsabilidade avançado pelo filósofo Jonas é hoje mais importante que nunca.

E quid da nossa responsabilidade, para connosco, para com a nossa terra, para com o nosso povo, para com os mais fracos de entre nós?

Quid da nossa responsabilidade?

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