Jornalismo ao pormenor

“O país precisa de pessoas que sonhem” – Álvaro Taruma, prémio Literatura BCI – 2018

Aos 31 anos de idade, Álvaro Taruma é o mais jovem escritor moçambicano a vencer o prémio literatura BCI – partilhando-o com Armando Artur. Com duas obras lançadas, entra para a nata dos vencedores deste prémio com a marca de ser quem menos publicou. Vencer este prémio representa, por isso, um desafio: manter a qualidade porque “as pessoas não vão querer trabalho sem qualidade.” Mas também é uma mensagem para escritores mais velhos e para o país: há uma vaga de escritores mais jovens que precisam de ser ouvidos.

Fotos: Alfredo Luís

O Lupa News foi ouvir o autor de “Matéria para um grito” (2018). Tal como muitos moçambicanos, está decepcionado com a governação, a política (assunto sobre o qual tem total aversão) e a degradação dos valores morais. E diz que “o país precisa de pessoas que sonhem e façam.”

Conhecendo Álvaro Taruma

Lupa News (Lupa) –  Para o conhecimento dos leitores faça uma breve biografia sobre você, onde nasceu, seus pais, entre outros aspectos.

Álvaro Taruma (AT) Eu nasci em Maputo, concretamente na Ilha de Inhaca. Sou filho de Carlos Taruma, que era um oficial da Marinha, e Adelaide Cruz, professora reformada. Foi lá, na ilha, que fiz o ensino primário e dei os primeiros passos como homem.

Lupa – Quando é que atravessa para Cidade de Maputo?

AT – Nós fizemos a travessia de forma constante, porque na Ilha de Inhaca para se ter bens é preciso atravessar para a Cidade de Maputo. Mas me fixo para Maputo no ano de 2004 que era para fazer o ensino secundário. Nessa altura, recordo-me que não havia 11ª nem 12ªclasse na Inhaca. É nesse contexto que venho para Maputo e depois vou para Universidade onde faço o curso em Ensino de Português. Depois dei aulas e retornei à Faculdade para fazer o curso de Sociologia e Antropologia.

Lupa – Alguns, até do seu círculo de amigos, dizem que Taruma é natural da província de Nampula.

AT- Sou de Nampula por origem. Meu pai é de Nampula. Tenho familiares em Memba, Nacala, Ilha de Moçambique, mas, devido a questões profissionais, meu pai fixou-se em Maputo onde conheceu minha mãe que é natural de Maputo. Daí que sou macua em termos de herança paterna.

Lupa – Este contexto em que cresceu permitiu-lhe ter domínio das duas culturas?

AT– No meu meio familiar, até sete ou oito anos falávamos a língua portuguesa. Nós tivemos que encontrar, dentro da família, uma língua franca de comunicação para que todos pudéssemo-nos entender.

As pessoas não vão querer trabalho sem qualidade

Álvaro Taruma
Foto: Alfredo Luís

Lupa – Falemos do Prémio BCI, em que na Edição 2018 é um dos vencedores juntamente com Armando Artur. O que é que o prémio significa para si?

AT- O prémio dá-me algum estatuto dentro do panorama da literatura. Eu com esta idade nunca pensei em ganhar um prémio BCI. Se calhar não é questão de idade. E vou continuar a escrever e a fazer minhas coisas. Só sei que se calhar vou começar a reavaliar muitas vezes e melhor os meus trabalhos a partir de já porque há essa responsabilidade. As pessoas não vão querer trabalho sem qualidade porque já seria desmerecer o prémio.

Lupa: Sobre a dupla dos premiados, no círculo de escritores mais jovens, em que Taruma faz parte, há quem diz que Armando Artur aparece (como premiado) à reboque. Qual é a sua opinião?

AT – (Risos). Não sei. É difícil porque o Armando Artur lançou um grande livro no ano passado. E depois há pessoas que consideram o meu livro também um grande livro. Mas isso são coisas. Não sei. O que é que eu diria? Se pedisse também ao Armando Artur para ele comentar o facto de eu aparecer à reboque, o que é que ele diria? Compreende o que quero dizer? Mas acho que o júri achou que as duas obras mereciam e deu o seu mérito.

Lupa – Com o prémio sua voz como escritor passa a ser mais ouvida.

Sim. Sei e, por isso, a minha escrita é de questionamento também em relação ao estado em que o país está. A ideia é: podíamos estar melhores. É uma escrita que apela o respeito pelo Homem, pela natureza. Este país… sabe… as questões morais, as matanças, esses conflitos que nunca cessam. Temos que questionar isso e dizer isso. É o contraste. São os ricos por um lado e os pobres por outro. São esses os assuntos que podiam ser melhor trabalhados.

Nós não estamos em melhores momentos no país. Já estivemos bem há alguns anos, mas há cinco anos para cá as coisas pioraram. Caímos numa crise e dentro da crise há muita coisa a deteriorar-se. As pessoas estão muito mais a olhar para os seus umbigos. Há muitas matanças. O país precisa de pessoas que sonhem e que fazem.

Lupa – Sobre a crise no país e valores sociais que fez referência, como olha para o problema em torno de Manuel Chang?

AT– (Risos) Esse assunto é político. Tu estás a falar de ser extraditado não sei o quê… eu vou dizer uma coisa. Há uma percepção aqui em Moçambique de que o funcionamento da justiça deixa muito a desejar. Há pessoas que acham, por exemplo, que as prisões que estamos a ouvir agora em torno das dívidas ocultas não passam de teatro. Mas para alguém assumir que uma prisão é teatro é porque essa pessoa não acredita na justiça.

Algumas pessoas desejam que Manuel Chang seja extraditado porque há uma apreciação que ele cometeu um erro que tem que ser pago. Então não gostariam que ele viesse à Moçambique porque não teria, digamos, o castigo merecido. Acreditam que nos Estados Unidos da América a justiça funciona.

Eu particularmente só quero que a justiça seja feita e acredito no nosso país. Não direi na justiça porque eu sou parte das pessoas que têm a apreciação de que a justiça muitas vezes condena mais aquele que não tem recursos para se defender e aqueles que têm recursos para defenderem-se e manipular o poder, usam desse seu poder para se safarem da justiça. Temos essa apreciação de pessoas que foram à cadeia e pagam multas e porque têm dinheiro, mas quem é apanhado com ovos tem que ficar muitos meses na prisão. Isso é política.

Lupa – Como é que olha para nossa democracia no concernente ao diálogo político?

AT- Estás a me fazer perguntas de política e eu não sou um grande fã de política. Sou muito fã de artes. Essas coisas de política, eu às vezes ando cansado. Você olha para as coisas como estão aqui em Moçambique e você cansa a cabeça.

Lupa – Como é que olha para os valores sociais?

AT- Sabe… nós estamos em crise e essa crise é económica e depois é social. Estamos propensos a muitos problemas sociais porque quando as pessoas estão em crise psicologicamente não ficam bem. O que as pessoas fazem, como ganham a vida, há muitos problemas.

Lupa – Pode ser mais específico?

AT– Eu agora estava a ouvir de alguém de que a taxa de suicídio subiu muito em Moçambique. As pessoas se suicidam porque têm muitos problemas. Há divórcios. Há sociedade não está coesa. Se perguntar porque há divórcio vai perceber que há traições, porque é que há traições, porque querem sobreviver.

E depois há problema de corrupção. Tu queres um documento e as coisas vão funcionar só se tu pagares; há crimes. São problemas de moral de uma sociedade.

Lupa – Como repor tais valores?

AT- Isso passa por adoptar políticas, investir na educação das pessoas. Muitas vezes pensamos que há má governação, mas temos que também ver a qualidade dos que nos governam. Se tivermos uma sociedade bem educada não teremos uma sociedade corrupta; não poderemos ter pessoas que desviam bens do País para benefício próprio. E isso é um ciclo em que cada vício vai criando o outro. As crises provocam outro tipo de crises.

Se formos a ver, as acções positivas geram acções positivas e as acções negativas, como a crise, estão a gerar mais acções negativas.

Livros e literatura na vida de Taruma

Lupa – Como entra para o mundo de livros e literatura?

AT- Deixe-me recuar. Começou muito bem quanto perguntou do livro. Agora, livro e literatura são coisas para mim totalmente diferentes. A literatura é literatura e o amor pelos livros é outra coisa. Mas tem que começar por amor pelos livros e cultivar esse gosto pela leitura. E só daí é que nós podemos sonhar com a literatura propriamente dita.

Eu começo a ler um bocado mais cedo. Quem me ensina a ler é o meu pai. Isso foi dois anos antes de ingressar na escola.Recordo-me que naquela altura eu levava os livros dos meus irmãos que estavam na 2ª e 3ª classes e como havia muitos desenhos e cartazes eu procurava fazer legendas daqueles desenhos. E prontos, habituei-me àqueles livros, a ler de tal forma que na sexta classe quando estava a estudar e saber o que é poesia fiquei encantado. Gostava muito de ler que conheci e admirei autores e de forma natural aquilo foi me penetrando. Mas na oitava Classe encontro um texto do Leite de Vasconcelos, achei tão bonito que comecei a fazer o decalque. Via a rima, fazia o esquema rimático e tentava escrever coisas parecidas com aquelas seguindo o mesmo padrão. Fui tentando aquele (de Leite Vasconcelos) e outros e percebi que gosto de escrever.

Lupa – Nessa altura quais são os livros que lia?

AT- Por exemplo, o poema de Leite Vasconcelos que chama-se De imaginar-te somente. Tinha uma parte musicada que começa assim: Amo-te na rua quando passas/só de imaginar somente/no seu desvario quando passas/só de imaginar somente. Ele repetia e isso está no manual de português da oitava classe nos anos 2000, antes das mudanças nos livros escolares. E depois, tinha um poema do Mia Couto chamado Canção da Mulher do Pescar. Recordo-me desses textos.

Mas antes já tinha lido Luís Bernanrdo Honwana, Aldino Muianga, Ungulani Ba Ka Khosa. Mesmo assim, recordo-me que nessa altura quando me interessei pela leitura não tinha muitos livros disponíveis.

Eu ouvia um programa na radio chamado Esculpindo a Palavra, da Rádio Moçambique (RM). No programa liam textos e falavam da biografia dos autores, o que me dava a possibilidade de estar em contacto com outros autores diferentes dos que lia nos manuais. Isso ajudou-me. Também ajudou-me minha irmã que gostava de ler e partilhávamos os livros.

Lupa – Qual foi o seu primeiro livro, o que comprou com dinheiro do seu bolso?

AT- O meu primeiro livro foi de Rui Nogar, O Silêncio Escancarado. Foi o livro que efectivamente comprei com o meu dinheiro e aquela coisa de… eu tenho que comprar um livro.

Mas recordo-me enquanto vivia na Inhaca de uma amiga da minha mãe que doou livros na sequência de um incêndio que tivemos em casa. Nesse conjunto tinha um livro muito interessante que era O ABC de Castro Alves. Tinha textos bonitos em torno da obra e vida de Castro Alves. Tinha ali normas e eu começo a aprender as rimas, versos, estrofes e toda a estrutura. Acho que foi daí que comecei a dizer que gostaria de ser poeta.

Nunca fui um membro efectivo do kuphaluxa

Lupa – Taruma faz parte do movimento literário Kuphaluxa composto por um pequeno grupo de jovens que há mais de cinco anos, geralmente, se reúnem num dos espaços da Baixa de Maputo para desenvolverem assuntos ligados à literatura. Quais são os momentos marcantes no Kuphaluxa?

AT– O Kuphaluxa para mim é um grupo de amigos e o primeiro momento é conhecer esses amigos. Eu vou para o Kuphaluxa com o Dingiswayo e havia lá o sarau. Apresentei os meus poemas. Lá quando vi as pessoas a declamarem poemas percebi que tinha que melhorar aquilo que eu estava a escrever. Nessa altura desapareço um bocadinho do grupo para treinar a minha escrita. Conheço o Japone (o poeta Japone Arijuane) no ferry-boat onde nos encontrávamos sempre quando atravessamos da Catembe a Maputo e vice-versa. Eu lia os meus poemas para ele e ele lia os dele para mim. Então ele disse que um dia tinha me visto no Kuphaluxa e que devia voltar para lá. Ele já estava lá e era membro da direcção.

Então o meu primeiro desafio foi conhecer todos que lá estavam. Japone Arijuane, Eduardo Quive, Nelson Lineu, Amosse Mucavele entre outros. Na altura nos encontrávamos as quartas-feiras para avaliarmos os livros que liamos e os textos que escrevíamos. Eu comecei a ganhar respeito dentro do grupo porque o meu texto falava, tinha alguma coisa. Acabei tendo uma aceitação muito natural, mas muito por causa da força que os meus textos traziam. E continuamos lá, eu e meus amigos. O Kuphaluxa foi uma escola. Efectivamente, nunca fui membro efectivo do Kuphaluxa. Nos processos burocráticos, etc, eu fui mais amigo das pessoas do que efectivamente membro. Mas foram eles que me ajudaram a lançar os livros no sentido de escrever uma carta para o FUNDAC (Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural), a pedir patrocínio , nós não conhecíamos as coisas. Nós no Kuphaluxa nos encontrávamos, discutíamos a literatura, a nossa forma de escrever, a ambição de lançar livros.

Lupa – Pode ser mais específico quando diz que nunca foi membro efectivo do Kuphaluxa?

AT- Nunca fui exigido nada e nunca corri para ter um cartão (de membro) e nunca tive.

Lupa – Se sentia dentro de um grupo?

AT- Sim.

Lupa – Quais são os membros do Kuphaluxa que admiravas?

AT– Eu acho que foram aqueles que efectivamente tornaram-se meus amigos. Na altura, quando chego no Kuphaluxa era mais amigo de Japone Arijuane porque vivíamos na mesma zona, na Catembe. E o Japone é muito amigo do Nelson Lineu e o Nelson também recebeu-me muito bem.E depois começo a ter amizade muito grande com Amosse Mucavele, com Eduardo Quive, e outros.

Lupa – Até certo ponto desviou o foco da pergunta. Quais são os membros que admirava?

AT- Nós tivemos… eu descobri no Kuphaluxa que tínhamos textos que nos definiam com estilos próprios. Eu admirava o trabalho de Nelson Lineu, mas não queria escrever como ele. Só dizia, olha, tu leste muito Pessoa (Fernando Pessoa). Eu naquela altura era muito amigo de Eduardo White. Admirava a ele. Convivi com ele. Nessa altura, a minha escrita era whitiana. E tinha os outros, O Japone (Arijuane) gostava muito do Patraquim e do Melo Neto. Ali descobrimos que cada um tinha um estilo segundo autores que preferia e mesmo assim nos nos admirávamos.

Álvaro Taruma
Foto: Alfredo Luís

E nos livros, estou a tentar roubar a palavra de Nelson Lineu, nós aprendemos uns com os outros. Cada livro representou uma etapa. O Lineu lançou o primeiro e através dos erros do Lineu nós depois vimos que tínhamos que corrigir o livro seguinte que foi do Japone. E dois anos depois do Japone fui eu que lanço Para uma cartografia da Noite, mas já com alerta em relação a erros que pudessem surgir.

Lupa – Existe/exisitiu uma elevada arrogância dentro do Kuphaluxa no sentido de só serem jovens poetas os membros do grupo e para estes, os que não fazem/faziam parte do círculo não tem talento para a literatura. O que diz a respeito?

AT-Não sei. O que acontece com isto é a questão de egos. Nessa coisa de arte quando tu vais crescendo começas a olhar algumas coisas para baixo. As pessoas começam a discutir questões de qualidade.

Lupa – Assume a existência de arrogância dentro do Kuphaluxa?

Eu assumo que em qualquer agrupamento há aquela coisa de identidade. Se calhar aquela coisa de alguém foi lá no Kuphaluxa e viu isso, mas os outros agrupamentos também têm isso. Existem egos. Algumas pessoas do Kuphaluxa podem ter essas manias.

Lupa – Como olha para o debate em torno da existência de uma geração de escritores levado à cabo pelo vosso movimento, em que, por um lado, vocês se assumem como essa nova geração, mas, por outro, alguns escritores que surgem no pós-independência vos afastam deste protagonismo?

AT– Recordo-me desse debate. Acompanhei pelas redes sociais. Mas também já passam alguns anos.

Lupa – E como é que assume esta relação?

AT- Nós já temos uma boa relação. Posso dizer, por exemplo, nos encontramos na AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos) as sextas-feiras para conversar. Conversamos com Ungulani Ba Kha Khossa, Armando Artur, Pedro Chissano, Marcelo Panguana… todos aqueles que pertencem a AEMO (Associação dos Escritores Moçambicanos).

Na altura houve um pouco de atrito porque para chegar e sentar a mesma mesa… eles queriam conhecer, quem são, o que escrevem conforme iam lendo iam nos aceitando porque depois parece que perceberam que sim, aqui, há algum trabalho. E hoje em dia já não existe esse atrito.

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