Jornalismo ao pormenor

O dia que Maputo jorrou lágrimas numa guerra que o Município apelidou de pacífica

Passam 30 dias que o município “pulverizou” vendedores informais na zona baixa de Maputo. Lupa News acompanhou, fotografou e escreveu o referido episódio e agora partilha com o leitor. Boa leitura.

Maputo, 13 de Março. Manhã aparentemente normal. Sexta-feira. 6h:00. No ponto onde as avenidas Guerra Popular e Maguiguana se beijam o girar das rodas são de uma velocidade à camaleão, chegando a parar por uns segundos no meio da estrada num cenário anormal. <<Eishhh!>> <<O que se passa?>> <<Engarrafamento>>.  Conversam duas mulheres jovens a partir do terraço do prédio que fica do lado do pôr do sol entre as avenidas já mencionadas. Ouve-se um disparo. Depois rebentam mais dois. Mais tarde saber-se-á  que não é tiro para matar. É gás lacrimogénio. Será um dia em que alguns (principalmente vendedores informais), irão sentir o poder de  gás lacrimogénio. Uns estarão a repetir a experiência. Para outros será pela primeira vez. Uma senhora de quase sessenta anos de idade, que vende há quase trinta anos, chora compulsivamente porque parte dos lucros da venda informal são canalizados para um filho que há anos padece de epilepsia. Agora que o Município está a lhe escorraçar das ruas não sabe para onde ir.

Na referida Sexta-feira, será um dia em que os polícias com armas, diga-se, enferrujadas estarão em acção “pulverizando” parte de cidadãos que, lembre-se, em Outubro do ano passado votaram no exercício que considera-se democrático. Porque é que estas acções acontecem só agora, depois de passarem as eleições? Questiona um jornalista que trabalha para um órgão internacional que por sinal cobre o evento. Os polícias estarão a pousar como se estivessem a participar de uma sessão fotográfica. Haverá cães rigorosamente treinados para assustar gente indefesa. E, numa operação governamental equipada até aos dentes para tirar da rua, compulsivamente, os vendedores informais, no final da tarde o Conselho Autárquico dirá que tratou-se de uma acção pacífica com focos de pequenas agitações, entre outros dados confusos se comparado com o que o LUPA NEWS vivenciou no terreno.

 

Quando as ruas de Maputo se transformaram em imagens do cinema

O dia que Maputo jorrou lágrimas numa guerra que o Município apelidou de pacífica

Da Maguiguana à Ponto Final, ao longo da Guerra Popular os automóveis ora estam praticamente congelados, ora circulam em velocidades acima das regras estabelecidas. Os transportadores, tanto semi-colectivos como públicos, uns passam lotados, outros vazios. Na paragem Ponto Final nota-se forte presença da polícia, se comparado com dias normais. Vendedores correm sem direcção definida. Um carro do Município que recolhem, à força,  mercadorias, confirma o que as redes sociais avançam. Um tumulto na zona da baixa da cidade de Maputo consequente da retirada obrigatória e compulsiva dos vendedores informais. Ouvem-se disparos. Não são brinquedos pirotécnicos. É gás lacrimogénio.

A confusão aumentava ao descer pela avenida Guerra Popular. Ali onde atravessa a Josina Machel é um dos focos dos tumultos. Os transeuntes correm com a mão sobre a boca e nariz motivados pelos efeitos de  gás lacrimogénio que a polícia dispara com frequência para dispersar as pessoas.

Na baixa, onde a acção policial contra vendedores informais é intensa é  possível ver caixotes queimados na estrada, focos de aglomeração de vendedores de caras de revolta contra à retirada compulsiva. O gás lacrimogénio parece um dos piores problemas dos vendedores. Na verdade o gás lacrimogénio lembra  “Baygon” mas melhorado para dar cabo do pulmão humano. Tal como a noite no quarto, o mosquito fica tonto, dá uns giros e acaba pelo chão. O gás lacrimogénio quando disparado pelo ar, onde cai, sente-se por cima da língua, pelas veias da garganta, pica a pele da face, atinge os olhos e o ser humano começa a lagrimejar, afoga os pulsões dando a impressão que está a destruí-lo. “Quando isso acontece a solução instantânea é fugir do local e lavar a cara, isso ajuda”. Deve ser por isso que o gás lacrimogénio é muito usado pela polícia.

O dia que Maputo jorrou lágrimas numa guerra que o Município apelidou de pacíficaFoi nesse cenário real de dor, lágrimas, indignação que vendedores informais passaram na sexta-feira 13, um dia de azar. Aliás, azar é o que um vendedor informal pensa que a Autarquia Municipal está a  trazer para o espírito empreendedor dos comerciantes. Em conversa com o LUPA NEWS, um dos vendedores acredita que vender na rua é um dom que se é oferecido e o Governo não pode retirar quando assim lhe apetece. A nossa reportagem captou uma estória de vendedora informal que pode ser representativa: de uma mulher de 56 anos que vende na rua há 26 anos. Parte do lucro é para o filho que há anos padece de epilepsia.

 

A “mamana” que jorrou lágrimas de verdade, e outros sentimentos de indignação

Perto do prédio da Laurentina, ao longo da Avenida Guerra Popular, entre a multidão surgiu, valente, Florinda Maumana, forte, 1,70m de altura para reagir sobre os tumultos. Quando abriu a boca chorou nas primeiras duas palavra pronunciadas <<meu filho…>>. As lágrimas que do peito pareciam vir do fundo do coração amoleceram os lábios que estavam secos. Não eram lágrimas de gás lacrimogénio, como acontecia com alguns que no local acompanhavam o evento. Nos próximos minutos se saberia que eram lágrimas de uma batalhadora, humilde, que luta com dignidade para sustentar a casa e os encargos financeiros do filho de 14 anos doente desde a infância quando os médicos diagnosticaram epilepsia. Este filho já perdeu operação em 2014 porque o dinheiro da venda informal não era suficiente para pagar o tratamento.

Agora lhe aparece isto. Florinda Maumana, deve sair da rua de forma compulsiva, sob pressão da polícia altamente equipada com  gás lacrimogénio e dos cães rigorosamente treinados. Sem falar de algumas balas reais que a qualquer momento podem aparecer naquele cenário de “perdidas”.

<<Estou a pedir socoró. Estamos a pedir socoró>>, suplicou Florinda, entre soluços e lágrimas.

 As lágrimas, não encenadas da “mamana” (termo do sul do país usado para chamar carinhosamente mulheres mais velhas, com idade de uma mãe) Florinda,  que encontra na rua a única solução para salvar o filho da enfermidade e pôr pão em casa, dá a entender que o problema da venda informal não está no simples campo das “pequenas desordens causados por um grupinho de pessoas”. Trata-se de luta de sobrevivência humana de uma classe que se encontra no eixo oposto das elites favorecidas.

O dia que Maputo jorrou lágrimas numa guerra que o Município apelidou de pacífica
Imagem: Lupa News

Aliás, Fernando Matsulo, outro batalhador, vende bananas à preço de 10 meticais para sustentar a família. Diz que faz isto porque outra solução seria assaltar as pessoas e a moral lhe impede de praticar assaltos. Vive nos confins da Matola, donde para chegar à baixa da cidade de Maputo deve pagar transporte. Diz, com um desespero facial notavelmente profundo, que ainda não está preparado para deixar de vender nas ruas.

No terreno, o cenário indica que de facto, os vendedores não estão preparados para abandonar as ruas. Ainda naquela sexta-feira de lágrimas, mesmo com as investidas policiais pela manhã até duas da tarde, uma senhora acendia carvão para assar massaroca na paragem do Ponto Final quando eram 15h. Um pouco depois, na Guerra Popular, aqueles que vendem roupa na dita “boutique inclina” estavam lá em grande. Os clientes estavam também lá, a inclinar.

Um vendedor informal da Zambézia, que casou com uma mulher de Maputo num lar com quatro filhos disse, enquanto arrumava  a mercadoria de material eletrónico e informático, que vender é uma actividade que está ligada a sorte que é dada à cada um. “Sorte de vender nas ruas. E o governo está a perseguir e atormentar nossa sorte. Há quem tem sorte para os estudos, há quem tem sorte para ser mecânico, e há quem tem sorte para vender nas ruas. Não é qualquer um que vende na rua’’, disse, crédulo, provando que a venda informal é um assunto definitivamente complexo e envolve várias áreas de intervenção. O vendedor proveniente da Zambézia tem casa própria e um conjunto de dependências que usa para arrendamento. Mesmo assim, todos os dias está na rua porque aquilo é (segundo diz) o meio de sobrevivência.

 

O posicionamento ‘’que não bate’’ do Conselho Autárquico de Maputo

O dia que Maputo jorrou lágrimas numa guerra que o Município apelidou de pacíficaReagindo os tumultos do dia, os  depoimentos da porta-voz do Conselho Autárquico de Maputo, Albertina Tivane, não correspondiam com o que o LUPA NEWS encontrou no terreno. Por exemplo, Albertina Tivane, explicou que a acção ocorreu pacificamente e houve dialogo e consensos. A polícia canina, os disparos constantes de gás lacrimogénio, os vidros quebrados em algumas montras, a queima de caixas e pneus nas ruas, as lágrimas compulsivas, o retorno para as vendas ao longo da tarde provavam que não havia diálogo nem consensos entre a autarquia municipal e os vendedores informais.

“A policia esteve no terreno apenas para assegurar a ordem e proteger”. Disparar constantemente gás lacrimogénio para expelir os vendedores informais está, pelo menos por parte dos vendedores, para além de simples  palavra “apenas”.

“Existem na cidade de Maputo mais de 4000 bancas livres. E do recenseamento que temos existem cerca de 4000 vendedores informais”. Informação de duas fontes que o LUPA NEWS apurou no terreno aponta para 20.000 vendedores informais.

 “Os vendedores informais compreenderam e estão de acordo com a acção do Município e nós estamos a dialogar para que em conjunto a acção aconteça sem violência”. Entrevistados pela nossa reportagem sublinharam que ainda não estão preparados para sair das ruas.

 

 

 

 

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