Jornalismo ao pormenor

O DEVER DE PHILIA (ANTIPRIMA)

Protagonistas desejáveis: Nyusi, Ramaphosa, Samia Suluhu, Chakwera

ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Alves Amaral, Carlos Carvalho, Eva Trindade

C’eravamo tanto amati é o titulo de um famoso filme produzido por Ettore Scola, no qual tomaram parte grandes intérpretes – Vittorio  Gassman, Stefano Satta-Flores, Nino Manfredi, Aldo Fabrizi e Stefania Sandrelli – dignos continuadores do realismo italiano. Por uma qualquer astúcia da razão, como diria Hegel, o filme foi dado ao publico em 1975, ano em que a geração daqueles que ousaram assumir a própria responsabilidade histórica (Frantz Fanon) em nome de todos os moçambicanos, operários e camponeses, dos trabalhadores das plantações, das serrações e das concepções, dos soldados (…), dos homens e mulheres (…) proclamaram a independência (…) de Moçambique.

De todos os presentes na cerimónia, ninguém mereceria o termo de Philia (amor, amizade, companheiro) mais do que a Tanzânia. Foi a seu abrigo que os heróis da independência encontraram uma retaguarda segura. Julius Nyerere encontrou-se com Eduardo Mondlane pela primeira vez, quando aquele era ainda militante pela causa da independência da Tanganica e, este, funcionário das Nações Unidas. Mais tarde, a causa comum da luta pela liberdade, voltou a juntá-los.

Durante a reunião dos povos africanos de 1961 em Acra, Kwame Nkrumah tinha instado os líderes a juntarem os diferentes proto movimentos e, a partir deles,  criar  grandes movimentos  de libertação unidos; foi o que Mondlane simbolizou, realizando a união da Udenamo, Manu e Mani que está na origem da FRELIMO. Desde então, a Tanzânia representou a vanguarda da luta de libertação e foi o seu estado maior até chegarmos à independência.

Apesar das pressões de Portugal e até das investidas contra o seu território, a Tanzânia não claudicou e permaneceu firme e baluarte seguro. Depois da nossa independência foi um fiel companheiro (cum panes) na luta contra o Apartheid, como parte dos países da linha da frente e, depois, como membro da SADCC. Entre Moçambique e a Tanzânia  ouve uma amizade longa, duradoira que ultrapassou muitas vicissitudes de tempos e circunstâncias.

Na sua despedida ao povo tanzaniano, o presidente Machel agradeceu dizendo:

“A nossa amizade foi criada na luta, fundida em aço pelo sangue e, por isso, é indestrutível! A Luta continua! Obrigado Povo Tanzaniano! Obrigado CCM (Chama Cha Mapinduzi)! Juntos estamos! Assante Sana Ndungu!”

Na primeira visita ao Moçambique independente, Julius Nyerere (1975) retorquiu com uma extraordinária advertência sobre as diferentes espécies de tramóia, mas sobretudo quanto à necessidade de Moçambique e Tanzânia permanecerem e caminharem juntos:

O Povo de Moçambique não tem qualquer dívida para com o Povo da Tanzânia. Nem em dinheiro nem em gratidão. Nós na Tanzânia regozijámo-nos convosco no dia 25 de Julho deste ano porque esse dia marcou a vossa independência. Mas nesse dia nós também nos sentimos mais livres. E realmente ficámos mais livres(…). Nesse dia ficámos livres do peso do vizinho hostil. Nesse dia tornou-se possível para os nossos dois povos começarem a cooperar para o seu benefício mútuo. O desenvolvimento económico, político e social tornou-se mais fácil para ambos os povos (…).

Agora podemos avançar, unidos para a luta ainda maior que nos espera. Pois que temos ainda que transformar a libertação numa realidade na vida diária dos nossos povos. A Independência Nacional é apenas a primeira fase, tem que ser usada como base para deitar abaixo os muros da pobreza que cercam e aprisionam o nosso povo. Para este fim também precisamos uns dos outros (…). Mas o neocolonialismo não foi derrotado. Ele lança-se sobre as nações independentes de África como uma leoa sobre a sua presa.

(…) Juntos nós ganhamos a coragem uns dos outros». As nações independentes da África dão-vos as boas-vindas às fileiras dos lutadores pela liberdade económica (…). A   África precisa da vossa força do mesmo modo que vocês precisam da força da África.

 (…) O Povo de Moçambique abriu à força a porta da sua prisão. Vocês são já uma nação livre. Podem juntar-se agora aos vossos irmãos de outras partes da África na luta pela libertação económica. São agora livres para construir o vosso País para vosso próprio benefício. Podem agora juntar-se aos outros na construção de um continente livre.

Marchemos para a frente unidos.

O que está a destruir a indestrutível (Samora Machel) amizade entre os povos da Tanzânia e de Moçambique? Porque deixámos de “marchar unidos” (Nyerere)?

Tinha razão Gramsci: o drama da história é que ela tem muito a ensinar mas não tem discípulos à altura. Com a história deveríamos ter aprendido que os fautores dos nacionalismos (e das nossas fronteiras) aprenderam com o preço das piores e das mais mortíferas guerras (14-18 / 39-45) que a humanidade conheceu a necessidade e as vantagens da cooperação política e económica; foi dessas lições da história que nasceu a União Europeia.

Deveríamos ter aprendido com a guerra do Biafra, o golpe contra Lumumba, a divisão do Sudão, a destruição da Líbia (…) a ser mais cautos e prudentes diante do perigo (maldição) que os recursos naturais representam; deveríamos ter aprendido com as inúmeras ingerências, golpes de estados, assassinatos políticos, intervenção de mercenários, ajudas interesseiras, governos fantoches (…) porque o Ocidente ainda não fez o luto do colonialismo.

Deveríamos ter aprendido, com a nossa própria história,  que quando nos unimos (dentro de Moçambique) e na CONCP (apesar das distâncias entre os países) levámos a melhor sobre o colonialismo português; que quando nos unimos na região (países da linha da frente e SADCC) resistimos e depois  derrubámos o apartheid. Deveríamos ter aprendido que nunca somos tão bons e fortes como quando estamos juntos  e subordinamos as veleidades individuais aos interesses colectivos.

Devemos reler a história para termos sempre presente o preço que Toussaint-Louverture pagou (traição e uma morte atroz) e os haitianos ainda pagam (juros de dívidas e destruturação social) por terem ousado querer ser livres; as ideias de Edward Blyden sobre a africanização do Islão e o preço que a Libéria e a Serra Leoa continuam a pagar por ousarem querer implantar o manto da liberdade nas terras de África.

Devemos reler as advertências de Kwame Nkrumah no Consciencismo, mas sobretudo no África Must Unite, para colher as razões pelas quais ele defendia fronteiras comuns, moeda comum, falar com uma só voz e a junção dos parcos recursos humanos: evitar conflitos entre nós, tribalismos, divisões, guerras entre estados; evitar que aqueles que não querem que a África se desenvolva em liberdade – para citar Nyerere – não aproveitassem das nossas insuficiências (Machel) para nos pôr uns contra os outros, em seu beneficio.

Reler  a proposta de Cheikh Anta Diop de proclamar as independências em espaços geopolíticos culturalmente homogéneos; as propostas de  Mamadou Dia e Mamadou Touré sobre a necessidade de complementaridades económicas entre as nações e regiões do continente; revisitar o imbróglio histórico que levou à proclamação das independências em fronteiras definidas (e defendidas) pelos colonizadores, na clara defesa dos seus interesses.

Interrogarmo-nos sobre a cooperação que leva a um desenvolvimento desigual – entre Norte e Sul – e ao fracasso das nossas independências (Samir Amin).

Na situação em que estamos hoje, de um neocolonialismo descomplexado e sem pudor, até o dogma doutrinal da intangibilidade das fronteiras coloniais periclitou: o reino do Marrocos continua a ocupar a Mauritânia mas foi readmitida na União Africana, o Sudão foi dividido, o Congo despedaçado; talvez seja o que se pretende fazer com Cabo Delgado: separá-lo de  Moçambique.

Repensar a nossa história significa repensar o perigo que a pós-política colonialista representa, antecipar as razões que possam enfraquecer, ulteriormente, as nossas liberdades e  independências. Evitar conflitos, não só na nossa fronteira norte – com aqueles com quem tivemos uma forte ligação fraterna – mas também cair em, rivalidades coloniais não resolvidas, com o Malawi (em volta do lago Niassa), com a Swazilândia (sobre o acesso ao mar), com  a RSA (em volta da água, da electricidade, dos mercados económicos, da migração…) e dar ainda mais atenção à nossa fronteira com o Madagáscar porque, entre nós e eles, estão os ilegais e ilegítimos ocupantes das ilhas dispersas – símbolo de um colonialismo que nunca se desconfessou – e traineiras dos novos predadores. Temos que voltar a ler a nossa história para compreender o que pode, freudianamente, transformar o amor em ódio para investir no único espaço temporal que depende de nós: o futuro.

Em Aristóteles, a noção de philia compreende a ideia de equivalência, o que quer dizer, que não podemos ser amigos de todos, só daqueles por quem temos algum respeito e consideração, só com quem reconhecemos existir alguma coisa em comum. Foi este “em comum” – a luta contra a colonização – que ligou e criou amizade profunda entre a Tanzânia e Moçambique. Mas tratava-se de uma liberdade negativa – motivada pela opressão – como diria o filósofo de Oxford, Isaiah Berlin.

A nossa amizade que parecia tão grande, ao ponto de sobre o Rovuma construirmos a Ponte da Amizade, quando se tratou da liberdade positiva – do que Amílcar Cabral chamou de programa forte e consistia em trazer paz, progresso e felicidade aos nossos povos (no plural) – fomos incapazes de explorar e gerir juntos o gás que estava debaixo dele (Rovuma), para o benefício de ambos os povos. Aquilo que o sangue (maconde) e a história unia, a nossa ingenuidade e as tramoias dos outros (Total-mente) dividiram.

Quando no lugar do ‘em-comum’ nasce a competição de uns contra os outros, total-mente alimentados, até os laços mais sólidos se desfazem e o amor, e as suas razões que a razão não conhece (Pascal), desfalecem. É o que testemunham muitos casais divorciados, fraternidades quebradas (Sudão, Ruanda) alianças desfeitas (Jugoslávia, Checoslováquia, URSS). Mas existem também histórias de grandes recomposições (reconciliações),  a Alemanha, o Iémen e mesmo a Europa pós Hitler, Mussolini, Pétain, Franco, Salazar que hoje se apresenta (imperialmente) unida e reconciliada.

A eudemonia (felicidade) tem a ver com o amor. Não temos que incomodar a Bíblia e São Paulo  aos Coríntios para saber que ele tudo perdoa…

Licínio de Azevedo (não Ettore Scola), por favor,  faça para nós um filme, não de sal e açúcar, mas de amizade e solidariedade. Não use só a linha férrea, mas transporte-os também  pelas águas dos rovumas, niassas, maputos de interesses, para transformar as nossas fronteiras em pontes.

Os protagonistas devem ser Nyusi, Ramaphosa, Samia Suluhu, Chakwera (…), se querem ser dignos herdeiros de Nyerere, Mondlane, Machel, Mandela …

Título do filme: ‘o dever de philia’ (amor, amizade, solidariedade)!

ensaio de Severino Ngoenha, Giverage Alves Amaral, Carlos Carvalho, Eva Trindade

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