Jornalismo ao pormenor

Guerra de postulados, dinheiro contra a vida

Texto: Severino Ngoenha, Giverage Amaral e Eva Trindade

AH!, QUE PÁSCOA.

FINALMENTE UMA VERDADEIRA PÁSCOA…

Uma páscoa sem as enchentes da basílica de São Pedro, de turistas endinheirados ou fanaticamente em perigrinação à Meca do cristianismo. Uma páscoa sem os famosos concertos de Viena, dos assediadores Plácido Domingos, dos defuntos Pavarotis ou quem por eles hoje; uma páscoa de meditação sobre  a nossa condição humana (André Malraux).

A Semana Santa começou gloriosamente, com a entrada de Cristo em Jerusalém. As estradas vazias, estavam cheias, não de ramos de oliveiras mas, as de Maputo, de ramos de eucaliptos, transportados por vendedores pobres, humildes mas,  como há dois mil anos atrás, prontos a cantar hosana, hosana à passagem do descendente de David.

Ele passou mas, como então, ninguém estava disposto a reconhecê-lo nos vendedores informais, nos meninos da rua, nos pedintes, nos pobres (teologia de libertação), sem o ar glorioso que se espera de um Cristo.

Mas como podiam, sociedades e cidades do triunfo do homem,  ville lumière (Paris), das bolsas de valores (NY), das tecnologias de informação e comunicação (Los Angeles), da Robótica ( Tóquio), da descoberta do novo mundo (Madrid), do início da Industrialização (Londres), herdeiro do Império Romano ( Roma), da grande civilização grega (Atenas), reconhecer e aceitar ser salvas  por maltrapilhos e danados da terra: mendigos, desesperados, impotentes, incapazes e imigrantes?

E no entanto,  médicos Chineses e  Cubanos negros eram, escandalosamente, hossanados nas mecas do homo faber. Afinal a salvação pode vir de lugares inesperados, até daqueles, que contra os dogmas  ultra liberais, priorizaram a saúde pública.

Só espera ser salvo quem, como outrora os boat people vietnamitas e hoje os africanos na economia e no mediterrâneo, naufragam; só pede ajuda quem reconhece a própria impotência, os próprios limites.

Cidades do luxo – com Armanis, Guccis, Dolce Gabanna, Hugo Boss, AC. Milan que já foi do Berlusconi, e o Inter  de Milão que fora do Petroleiro Moratti e hoje  de magnatas asíaticos que, ao invés de ajudar os milhões de pobres dos seus países, exibem-se, narcisisticamente, pagando aos seus 22 jogadores efectivos mais do que o Orçamento Geral do Estado moçambicano com os seus 30 milhões de habitantes – podem gritar acudam-me?

Os pobres coitados viram-se obrigados a confinar-se em apartamentos, impotentes, à espera da salvação. Os deuses da silicom valley (google, microsoft, facebook…) descobriram, de repente, a sua própria condição humana. Os homens-deuses  – com estações nas órbitas, com satélites interestrelares, drones, mísseis patriotas, bombas-mãe e até nucleares, capazes de destruir o mundo 20 vezes,  estão aterrados, no chão, por um pequeno vírus, apenas perceptível por microscópio,  e se demostram incapazes de salvar os próprios concidadãos, sobretudo os mais necessitados: idosos, pobres…

Como não recordar o grito da multidão endiabrada: “Se és filho de Deus, salva-te a ti próprio!”.

Se Michel-Angelo estivesse entre nós (ou então o nosso Malangatana) de certeza que pintaria um quadro dramático da nossa condição. Não seria capela, porque entretanto o mundo se desencantou ( Michael Gouchet), nem cistina (Papa Sextus) porque faz tempo que os papas perderam a sua potestade. Seria, de certeza,  um banco ou uma instituição financeira, e exibiria  o nome de American, European, G-7 e, amanhã talvez, Chinese.

 Não temos o talento de um Bertholt Brecht. E se o nosso Lindo Chongo estivesse vivo ou o Txova Xitaduma activo, de certeza que não escreveriam nem as Doze mulheres de Muzerewa – do primeiro-  nem o Xiluva – sobre os nove meses de gestação – do segundo. Mulher, gestação, significam vida e os ingredientes que temos só se prestam, tautologicamente, para uma dramarturgia de requiem, à maneira de Mozart.

 Uma imensa procissão de pessoas positivas ao coronavirus, uma via sacra de pessoal sanitário que subia ao calvário da pandemia com o coração angustiado, médicos com camisas brancas portando a cruz dolorosa das pessoas contaminadas, cientistas a suar água e sangue como em Jetsemani, na busca de um tratamento ou de uma vacina, cireneus a oferecer-se para transportar, de uma maneira ou de outra,  a cruz pesada; verónicas expostas à infecção para limpar as lágrimas de pessoas contaminadas, contagem das vítimas na paixão das casas de terceira idade, cheias de pessoas idosas e com o factor de risco mais elevado, crianças com a coroa de espinhos de terem de ficar fechadas em casa sem perceberem bem o porquê, Marias que, como muitas mães, choram em silêncio a morte dos seus filhos ou ente queridos, o rasgo das vestes de muitas empresas e países, que assistem impotentes à falência das suas economias, a agonia dos jesuses asfixiados e sem a sorte do liberal Boris Johnson, de terem ventiladores das unidades sanitárias públicas para os auxiliar.

Não faltaram  Pôncios Pilatos, Comiches municipais, que só contaminam esposas; Pedros que apesar dos nossos Idais e Khennedis continuam a “não reconhecer” a responsabilidade do homem, ou Tomés que, trumpianamente, precisavam ver, tocar e  sentir o cheiro imundo da morte, para reconhecer a epidemia.

São figuras trágicas de uma Semana Santa inaudita, com uma Quinta-feira, verdadeiramente sacerdotal: homens e mulheres, médicos(as) e infermeiros(as), liturgicamente paramentados de branco e num verdadeiro culto ecuménico (Ecumene quer dizer encontro do oriente e o ocidente, isto é, todo o mundo): brancos, pretos, amarelos, vermelhos, Cristãos, Muçulmanos, Judeus, Confuncionistas, Indus, Budistas, Animistas,  desesperadamente mobilizados em favor da vida.

Uma Sexta-feira com a humanidade inteira envolta no rasgo do véu da morte, com milhares de óbitos na, EUA na Itália, EUA, Espanha, Franca, Bélgica, Brasil, cadáveres nos apartamentos, nas ruas, cemitérios sem espaço, fornos de incineração a todo o vapor, veículos militares transportando caixões, e com o silêncio a salmodiar:

“dinheiro, poder, onde está a tua glória, o teu poder tão forte e a tua vitória?”.

Um Sábado com a Via Sacra de ambulâncias em hospitais improvisados, acompanhados de silêncio profundo que se quebrava apenas com a melancolia do som das sirenes, que pareciam apelar à queda dos ídolos: Petrodólares, concorrência (e não cooperação) entre universidades, laboratórios  e países, priorização do privado em detrimento do público, colossais investimentos em armas mortíferas em detrimento da paz e da vida.

 O confinamento, tanto nas grandes cidades das metrópoles ricas como nas Palhotas, favelas e subúrbios do grande Sul, recordavam-nos, contra todos Darwinismos e seus avatares, que não há os naturalmente selecionados, mas que são os homens e as sociedades que criam as discrepâncias entre pessoas e mundos. Que não há os de fora e os de dentro, mas que pertencemos, todos, terrenamente, a uma mesma e única humanidade.  

Heiddeger, apesar das suas simpatias nazistas,  defendeu com força que somos Sein mit anderen (ser com os outros), o que apela à solidariedade entre os humanos. Mas também que somos Sein in der Welt (seres no mundo) o que apela a uma desantropocentração do mundo,  de um maior resguardo para com a natureza e outros seres.

É nesta metanoia que deveria consistir a nossa páscoa: reconhecimento de uma humanidade comum (para além das nossas diferenças religiosas, culturais e de riquezas), e de uma pertença à terra, o que nos torna comuns com os outros seres e nos impõe laços de cohabitação cordial com eles. 

Se páscoa é passagem, ela só pode sê-lo, in primis, no reconhecimento de uma humanidade que nos é comum, desvinculada da escravatura do poder e do ter; da devastação do mundo em que voluntariamente nos enfiámos e que são a razão da nossa morte.  

O que assistimos ou/e  vivemos é a derrocada de um mundo prometeico, vencedor, conquistador de um mundo que, nas suas contradições, acabou condenando-se, escravizando os outros e despoliando o planeta. Um mundo que em nome do ter e poder se autoriza  a oprimir, escravizar, ocupar indevidemente espaços, destruir espécies.

A páscoa de 2020 confinando-nos em nossos espaços residuais, convida-nos a uma reflexão sobre o que é ser homem, sobre o significado e valor da vida e  da existência; demonstra a sua fragilidade e até efemeridade (Séneca, carta a Lucilius) e por isso mesmo, a sua preciosidade e dignidade  (de dignitate humanae vitae, Pico de la Mirandola), nossa e dos outros.

Estamos todos à espera do Domingo da ressureição. Para muitos de nós, para o nosso sistema mundo, a salvação virá de uma das concorrentes indústrias farmacêuticas, à busca do Nobel e de ganhos lunares.

 Porém,  a vacina  não fará páscoa. Ela não eliminará a pandemia secular de que padecem milhares de seres humanos, que se chama fome, e cuja vacina conhecemos e chama-se comida. A vacina não eliminará  a pandemia das injustiças e das guerras, não eliminará a maior doença de que sofre o ser humano, o egoísmo.

  A páscoa virá, se nos confinamentos de nossos espaços residuais, nas nossas eventuais meditações, permitirmos a emergência da esperança de uma conversão (cum vertere); de uma inversão de postulados entre, de um lado, o humano – e a saúde pública – e, do outro, o produtivismo, que em nome da economia quer acabar com os confinamentos, mesmo a preço  de morte das pessoas (Trump, Bolsonaro, OMC); que em definitivo é um conflito entre a vida e a morte.

O Ocidente triunfa porque, à diferença de outras culturas e sociedades do mundo,   retirou a economia dos outros domínios sociais e os subordinou a ela (Karl Polanyi, A grande transformação). Hoje o economicismo levanta-se, qual lucífero, e reivindica a sua primazia, mesmo contra a vida. É o que Achile Mbembe chamou de necropolítica.

A páscoa, o domingo depende de nós, das nossas escolhas sobre a maneira como queremos ser e fazer humanidade. Não uma humanidade hipócrita, que manifesta condescendência com assombro, porque o coronavirus, numa atitude inaceitável e politicamente incorrecta, está afectando maioritariamente os brâmanes e não os dalits (intocáveis); donde previsões que parecem escojuros, sobre os milhões de mortos  que nos esperam em África.

De todas as capitais de indústria humanitária, até às afectadas pelo coronavirus e sem capacidade de resposta, surgem incompreensível e paradoxalmente propostas de ajuda, que soam como medo de perda de vantagens que a nossa sistémica pobreza e dependência permitem.

A África já carrega, historicamente, a sua cruz e boa parte do seu peso vem de um humanismo falso, que trapaceia com os seus proprios princípios (Aimé Cezaire). A nossa resiliência já nos levou a transformar capulanas e lenços em máscaras, a meter recipientes de água e sabão em cada esquina e a mudar o nosso ku rungulissa a Ndzava e de darmos sentido à existência.

Não precisamos de falsas Verónicas, que no lugar do suor metem sangue, nem de equívocos  josés de arimateias que aumentam o peso da nossa cruz. Precisamos de um mundo que se repense nos seus alicerces e fundamentos.

A questão é, como transformar as pequenas solidariedades, que começaram a engodar pelo medo da morte, em convicções e princípios de uma nova política que defenda a vida; não só entre os homens mas que transborde as fronteiras do humano e abrace, fraternalmente, todo o criado?

Francisco, não o da Argentina, mas o de Assis já cantava:

“Altíssimo, onipotente, bom Senhor,/ Teus são o louvor, a glória, a honra/
E toda a bênção / Só a Ti Altíssimo, são devidos;/ e homem algum é digno/
De te mencionar./Louvado sejas, meu Senhor,/Com todas as Tuas criaturas,/
Especialmente o Senhor irmão Sol,/Que clareia o dia/E com sua luz nos alumia./
E ele é belo e radiante/Com grande esplendor./De Ti, Altíssimo, é a imagem./Louvado sejas, meu Senhor,/Pela irmã Lua e as Estrelas,/Que no céu formaste claras/ E preciosas e belas./Louvado sejas, meu Senhor,/Pelo irmão Vento,/Pelo ar, ou nublado/
Ou sereno, e todo o tempo,/Pelo qual às Tuas criaturas dás sustento./Louvado sejas, meu Senhor/Pela irmã Água,/Que é mui útil e humilde/E preciosa e casta./Louvado sejas,/meu Senhor,/Pelo irmão fogo./Pelo qual iluminas a noite./E ele é belo e jucundo/
E vigoroso e forte./Louvado sejas, meu Senhor,/Por nossa irmã a mãe Terra,/Que nos sustenta e governa,/E produz frutos diversos/E coloridas flores e ervas./Louvado sejas,/ meu Senhor,/Pelos que perdoam por Teu amor,/E suportam enfermidades e tribulações./
Bem aventurados os que sustentam a Paz,/Que por Ti, Altíssimo, serão coroados.”

As baleias que tocaram depois de muito tempo os portos de Marselha, que invadiram os canais de Veneza, ou os Leões em manadas as estradas do Krugger Park, já mostraram disponibilidade em reconciliar-se  com os humanos e a aceitar a proposta que não lhes foi feita.

O essencial da páscoa é a cruz e a possibilidade Madalénica da tumba vazia.

A cruz, milhares de crianças do mundo inteiro, dos subúrbios de Moçambique, das favelas do Brasil, da Venezuela; sobreviventes dos bombardeamentos da Síria, dos orfãos do Iraque e do Afeganistão, do conjunto dos danados da terra já a carregam há séculos, como a carregam os animais e as plantas.

Nós, como madalenos, podemos ir  esvaziar a tumba, mas só podemos fazê-lo, fazendo fraternidade e mudando a nossa cultura, a nossa maneira de ser homens e estar no mundo.

Foi uma páscoa sem cabritos, coelhos, chocolates, fois gras, champanhe ou panetone; mas com família, com possibidades de recolhimento, de meditação, de buscar  esperança.

Os liturgistas dividem os anos litúrgicos em A, B e C. O ano A é da constatação, o ano B dos discernimento e o ano C da Acção. A páscoa 2020, para nossa sorte, caiu no tempo da constatação e constatámos (…). As nossas possibilidades são vastas, mas só  o serão se fizermos discernimento e passarmos à acção.

Cristo talvez não esteja na tumba, mas de certeza foi expulso da vida das nossas sociedades (Dostoievski,  Irmãos Karamazov). Mas o mais importante é que a  vida, como a liberdade, é uma dádiva – de Deus – mas confiada aos homens. Isto quer dizer que a tradução hermenêutica do Domingo e da ressureição, dependem da nossa metanoia.

Depois de vidas inteiras de páscoas falsas e faustosas, finalmente uma verdadeira páscoa….

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