
Funcionários exigem pagamentos para atender utentes sem marcação prévia
Corrupção na Direcção Nacional de Identificação Civil
O sistema de marcação prévia para a emissão de Bilhetes de Identidade (BI) foi introduzido em Agosto de 2021 pela Direcção Nacional de Identificação Civil (DNIC), inicialmente nas cidades de Maputo e Matola. A medida surgiu como resposta à necessidade de organizar os fluxos de atendimento nos postos, reduzir as enchentes e garantir o distanciamento social em contexto de pandemia da COVID-19, e não só, mas também a modernização do atendimento e melhoria da qualidade dos serviços prestados ao cidadão garantindo maior eficiência.
Contudo, passados mais de três anos desde a sua implementação, o sistema tem revelado fragilidades que comprometem a sua credibilidade, muitos cidadãos relatam dificuldades recorrentes no acesso à plataforma de marcação, com horários limitados, páginas que não carregam e falta de vagas constantes. Em meio a essas dificuldades, começaram a surgir intermediários que oferecem marcações mediante pagamento, operando nos arredores dos postos de atendimento.
Há denúncias de envolvimento de funcionários da instituição e agentes da PRM nesse processo, facilitando o acesso prioritário em troca de valores monetários, esse fenómeno tem gerado preocupação entre os utentes uma vez que condiciona o acesso ao serviço, a mecanismos informais, colocando em causa a justiça e equidade do sistema de atendimento ao público.
Para pedir a emissão do documento é necessário fazer a marcação através do site da DNIC ou por telefone através de um contacto disponibilizado pela instituição, no entanto, é justamente nesse ponto que começa o verdadeiro problema, é que mesmo depois de fazer a marcação os utentes não são atendidos na hora e dia marcado, isto porque um ambiente tomado por corrupção entre funcionários e intermediários que favorecem a desigualdade na aquisição do documento priorizando quem pode pagar em detrimento de quem fez a marcação e quer seguir o processo de forma honesta.
Uma investigação jornalística conduzida pelo jornal expõe práticas preocupantes de cobranças ilícitas nos postos de emissão de bilhete de identidade (B.I) localizados nos distritos municipais de Kamphumo, designadamente: Bombeiros e 24 de Julho, na cidade de Maputo.
O que se descobriu, é um verdadeiro esquema que envolve funcionários da DNIC e até agentes da PRM que facilitam o processo de emissão de B.I’s sem agendamento mediante pagamentos ilícitos que variam de 1.100 e 2500 meticais para ter o documento que normalmente leva 07 a 30 dias em menos de 24 horas. O valor vai aos bolsos dos funcionários e não entra nos cofres do Estado.
Todavia, há quem não tem condições de pagar os 1000 a 1500 meticais para ter o documento em 24 horas, mas, pode pagar 50 a 100 meticais para furar a fila e assim tratar o seu B.I sem esperar muito.
Os primeiros casos analisados foram os casos do Posto dos Bombeiros, sito na Av. Eduardo Mondlane na cidade de Maputo, os postos de emissão de B.Is situam-se no terceiro andar do edifício, mas ao chegar já estão intermediários nas entradas disponibilizando-se em apoiar a acelerar o processo de atendimento até mesmo fornecendo o contacto dos funcionários que podem ajudar em troca de 100 meticais.
Após o pagamento do valor, o utente é levado para uma sala de acesso restrito, mas que está sempre cheia. E o motivo é simples: quem paga, entra e é atendido em menos de dez minutos. Segundo o intermediário, ele envia três a quatro pessoas por dia para a sua “amiga”, e cada funcionária tem seu próprio esquema, com comissão garantida a cada cliente enviado.
A investigação começou no dia 14 de Março, quando a equipa do jornal se dirigiu ao posto dos Bombeiros para tentar obter o BI sem marcação prévia, ou seja, sem seguir as normas. Assim que chegou, foi abordado por um jovem negociante que trabalha como emplasticador de documentos e também como “agente” de carteira móvel. Sem rodeios, perguntou o que o investigador precisava e ao ouvir que era para renovar o seu o BI com urgência, disse que conhecia uma funcionária que podia facilitar o processo e garantir o documento em seis horas ou no máximo nas primeiras horas do dia seguinte.
A proposta foi aceite. O jovem intermediário contactou a funcionária responsável tendo solicitado a quantia de 100 meticais pelo serviço de mediação de seguida, orientou o investigador a subir até o terceiro andar do edifício dos Bombeiros, onde fica uma sala ampla com várias brigadas de emissão, chegado lá, foram direto para uma porta de acesso restrito, onde encontraram três cadeiras e duas funcionárias.
À esquerda, estava a mulher responsável por agilizar o atendimento, ela pediu o BI antigo e alguns dados que rapidamente inseriu no sistema tendo em menos de cinco minutos dirigido o investigador a uma das cabines para fazer a captação de dados biométricos e impressões digitais.
Depois disso, foi ao caixa onde pagou a taxa legal de 165 meticais e com o recibo em mãos voltou até a funcionária que tirou a foto do recibo e imediatamente contactou a uma colega de nome Márcia, que trabalha na fábrica de emissão de BI’s para acelerar o processo e garantir a entrega para o dia seguinte. E assim foi, no dia seguinte, às 11h em ponto, o documento estava pronto.
O segundo caso, analisado é de uma mãe que pretendia tratar o B.I da sua filha menor que tratou o seu bilhete sem esquemas de corrupção e seguindo o processo normal de atendimento. No dia 31 de Março, a equipe acompanhou a mãe da menor que já havia feito a marcação, que estava agendada para as 11h20 e 11h em ponto, já estavam na recepção, receberam a senha e subiram ao terceiro andar, onde aguardaram por cerca de uma hora e vinte minutos até serem chamadas.
Quando chegou a vez, foram atendidas na cabine 19, onde foi feita a captação de dados depois dirigiram-se ao caixa para efectuar o pagamento, entretanto, por se tratar da primeira emissão, nada foi cobrado mas estranhamente ainda assim foi emitido um recibo como se o pagamento tivesse sido feito.
Na sequência, foram informadas de que o BI seria entregue em até 30 dias, entretanto, no dia 12 de Abril receberam a informação via serviço de mensagem (SMS) de que o documento já estava pronto.
Em conversa com a nossa equipa a mãe que participou na experiência comentou: “Cheguei e não estava cheio. Havia apenas cinco pessoas na fila, no entanto, tive de esperar mais de uma hora para ser atendida porque algumas pessoas, que nem estavam na fila, entravam e eram atendidas antes.”
Posto da DNIC 24 DE JULHO- a contrapartida é mais cara, 2500 meticais para ter o B.I com urgência
No dia 2 de abril, a equipa de investigação deslocou-se ao posto de emissão de Bilhetes de Identidade, localizado na 24 de Julho, para acompanhar de perto o funcionamento do serviço especialmente nos casos em que os cidadãos precisam do documento com urgência.
Logo à entrada, a nossa equipa foi interpelada por um agente de segurança privada e por uma agente da Polícia da República de Moçambique (PRM), que quiseram saber o motivo da visita. Ao explicar que precisava de um B. I com urgência e para o dia seguinte foi informado de imediato que tal serviço só seria possível mediante o pagamento de uma taxa extra de 2.500mts. Após uma breve negociação, o montante desceu para 2.000 meticais.
O valor acordado não seria pago nos balcões oficiais, mas sim por transferência móvel para um funcionário da DNIC que curiosamente nem se encontrava na instituição naquele momento. Este subiria depois até à sala de emissão. Desconfiado e receando cair numa burla, o investigador recusou prosseguir com o processo e decidiu agendar uma marcação formal para o dia seguinte garantindo assim o acesso sem entraves à entrada do edifício.
No dia 3 de abril, de regresso ao local e já com marcação feita, o investigador foi atendido na cabine 8 daquele recinto, reiterou a urgência na emissão do documento e, desta vez, a funcionária cobrou-lhe 1.500 meticais. Houve troca de números de telefone, com a promessa de que o documento seria entregue logo que estivesse pronto no dia seguinte. E assim foi.
Tratar o BI depende da marcação, paciência ou dinheiro extra
Fernando Mazuze partilhou a sua experiência ao tratar do BI: “Fiz a marcação do meu BI numa sexta-feira nos Bombeiros e agendaram para segunda-feira às 8h00. Chegado lá, atribuíram-me uma senha e tive de esperar na fila cerca de uma hora. Depois fui atendido, paguei no caixa, levei o recibo e fui para casa. Não recebi nenhuma mensagem. Tive de voltar ao posto de emissão depois de 30 dias e só então me entregaram o documento.”
Já uma cidadã que preferiu manter o anonimato, relatou falta de informação e um alegado esquema de facilitação: “Não sabia que era preciso fazer marcação prévia para tratar o BI. Tirei um dia do trabalho e fui ao posto, mas disseram que sem marcação não seria atendida. Falei com as senhoras do caixa e disseram que eu deveria pagar um ‘refresco’ no valor de 500 meticais, que já incluía os 160 meticais da taxa oficial. Não fiquei na fila e, na semana seguinte, ligaram-me a informar que já podia levantar o meu BI. Esse processo tem sido rápido para quem paga, mas quem não paga fica muito tempo à espera.”
Por sua vez, Cláudia Ubisse descreveu uma experiência regular, embora demorada: “Tratei o meu BI no posto de emissão da 24 de Julho. O processo foi normal, mas um pouco moroso, fiquei duas horas na fila. Estava atenta, lendo um livro, então a espera não foi dolorosa. Quando chegou a minha vez, correu tudo bem. O meu BI ficou pronto em uma semana e recebi a informação.” Explicou.
Direcção de Identificação Civil recusa-se a prestar esclarecimentos
Para obter esclarecimentos sobre os factos, a nossa equipa tentou sem sucesso obter esclarecimentos junto da DNIC sobre as normas e o funcionamento da instituição, particularmente em relação a denúncias sobre cobranças ilícitas e envolvimento dos funcionários.
O primeiro contacto foi feito a 3 de Abril com a porta-voz da instituição a nível nacional, Gilda Lameque, que na ocasião, informou estar de férias e encaminhou-nos ao porta-voz da cidade de Maputo, Justino Diogo .
Este, numa primeira fase, agendou a entrevista para o dia 8 de Abril. No entanto, na data marcada, deixou de atender às chamadas. Inconformados, submetemos uma carta formal de pedido de entrevista no dia 9 de abril. Dois dias depois, a instituição entrou em contacto a solicitar o envio prévio das questões a serem abordadas tendo as perguntas sido prontamente submetidas.
Desde então, procurámos saber quando seria realizada a entrevista, mas a única resposta que obtivemos de Justino Diogo foi que estava à espera de autorização do director da instituição para poder prestar declarações. Até ao fecho desta reportagem, não obtivemos qualquer esclarecimento por parte da DNIC.
GCCC confirma existência de casos de corrupção no DNIC
O Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) confirmou a existência de vários casos de corrupção envolvendo funcionários da Direção Nacional de Identificação Civil (DNIC). Embora sem avançar números concretos, as autoridades asseguram que processos envolvendo agentes desta instituição têm sido registados nos últimos dois anos.
“Sempre surgem denúncias e processos. Já tivemos vários casos em que estavam envolvidos funcionários da Identificação Civil. Eu particularmente, já tratei directamente de alguns desses processos envolvendo funcionários do DNIC”, disse o porta-voz da instituição, Ronvaldo Johnam.
O porta-voz do GCCC identificou setores com maior incidência de casos de corrupção, sendo a Polícia da República de Moçambique a mais destacada, com 84 processos. A Direcção de Identificação Civil, que integra o Ministério do Interior, também surge na lista de setores críticos propensos a corrupção.
Dados da instituição apontam para um total de 4.005 processos registados entre 2023 e 2024, dos quais 1.733 culminaram em acusações formais e 828 foram arquivados. Todos os processos acusatórios envolvem pelo menos um funcionário público, podendo haver mais de um arguido por processo. Isto significa que pelo menos 1.733 funcionários públicos foram formalmente acusados nesse período.
Dados do DNIC revelam que ao nível nacional a Identificação Civil possui 208 Postos de Atendimento instalados em todas as Províncias e Distritos, incluíndo alguns Postos Administrativos e localidades. A Identificação Civil encontra-se igualmente representada em 14 Missões Diplomáticas e Consulares da República de Moçambique.
Esta reportagem foi produzida com o apoio do Centro de Integridade Pública (CIP) As opiniões expressas neste artigo não representam necessariamente a posição do CIP.