Jornalismo ao pormenor

DIALÉTICAS LITERÁRIAS EM TEMPOS DE CRISE: QUE IDEIAS PARA O FUTURO?

Por: Armando Artur

Eu tenho cá para mim que os booms literários acontecem sempre em tempos de crises. Estes ocorrem justamente quando a literatura, pela sua natureza, busca retratar, relacionar, estabelecer rupturas, ou mesmo consertar dialecticamente as fissuras do mundo. E tenho dito, inclusivamente, que, para a literatura, tal como a própria vida nos ensina, todos os tempos são tempos de conturbação, de contrariedades, tempos estonteantes. No entanto, não importa se tais crises são de cariz político, económico ou social, ou simplesmente se são de índole emocional, existencial, identitário, climático ou epidemiológico, como a doença que a humanidade enfrenta neste momento, desde que esses tempos nos possam emprestar algumas reminiscências de esperança e felicidade, no plano individual ou colectivo.

E se olharmos para a própria história da literatura, encontraremos exemplos que atestam, em certa medida, o meu raciocínio. Temos o caso da “Geração Perdida” que, face às crises geradas pela primeira guerra mundial e, logo a seguir, pela recessão, produziu alguns dos grandes nomes da literatura do século XX. Aqui podemos trazer, à guisa de exemplo, Ernest Hemingway, John dos Passos, William Faulkner, entre outros.

 

Um pequeno extracto de “SARTORIS” de William Faulkner:

 

“… e desde que a essência da Primavera é a solidão, uma vaga tristeza e um sentimento de frustração atenuado, suponho que se consegue uma purificação mais profunda quando se lhe acrescenta um pouco de nostalgia como preventivo. Em casa encontro-me sempre a recordar as macieiras ou azinhagas verdejantes ou a cor do mar noutros sítios e entristece-me não poder estar em toda a parte ao mesmo tempo e que a Primavera não seja toda a mesma Primavera, como a boca das senhoras, de Byron.”

 

(In “SARTORIS”, 1958, EDITORA ULISSEIA, pg. 393)

 

Outrossim, temos a geração do pós segunda guerra mundial (a que eu chamo de geração da Guerra Fria), onde encontramos escritores como Sartre, Pablo Neruda, Gabriel Garcia Marques, Júlio Cortázar, Wole Soyinka, entre tantos outros.

 

No caso de Moçambique, podemos anotar os precursores da literatura moçambicana, como são os casos de Rui de Noronha, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Luis Bernardo Honwana, entre outros, que são produto da resistência colonial, da contestação da dominação estrangeira em Moçambique. Alguns destes até são transversais aos períodos críticos subsequentes, como os da luta de libertação nacional e do pós-independência, períodos esses caracterizados por grandes transformações políticas, económicas e sociais.

 

Vejamos este poema “África, surge et ambula” de Rui de Noronha:

 

Dormes! e o mundo marcha, ó pátria do mistério.

Dormes! e o mundo rola, o mundo vai seguindo…

O progresso caminha ao alto de um hemisfério

E tu dormes no outro sono o sono do teu infindo…

 

A selva faz de ti sinistro eremitério,

onde sozinha, à noite, a fera anda rugindo…

Lança-te o Tempo ao rosto estranho império

E tu, ao Tempo alheia, ó África, dormindo…

 

Desperta. Já no alto adejam corvos

Ansiosos de cair e de beber aos sorvos

Teu sangue ainda quente, em carne sonâmbula…

 

Desperta. O teu dormir já foi mais que terreno…

Ouve a Voz do teu Progresso, este outro Nazareno

Que a mão te estende e diz-te: — África, surge et ambula!

 

(in «Literatura moçambicana: as dobras da escrita», de Fátima Mendonça -2008)

 

Já no período pós-independência registamos o surgimento da geração “Charrua” da qual eu próprio faço parte, que se faz à luz na década 80 do século XX, emergindo de um contexto histórico particularmente conturbado para Moçambique. Este movimento literário  não se circunscreve somente aos fundadores da Revista com o mesmo nome, como  Hélder Muteia, Juvenal Bucuane, Ungulani Ba Ka Khosa, Tomas Vieira Mário, Eduardo White, Pedro Chissano, Idasse Tembe, pois alarga-se igualmente aos escritores como Paulina Chiziana, Aldino Muianga, Suleiman Cassamo, Filimone Meigos, Marcelo Panguana, Carlos Paradona, entre outros, cujo feito principal foi a ruptura estético-temática, com o que então estava em voga como, por exemplo, a chamada literatura laudatória e panfletária que, exaltando as conquistas revolucionárias, discurava, por assim dizer, o lado estético da criação literária.

 

Escutemos também este poema de Juvenal Bucuane:

 

RECUSAM

 

Recusam

que esta flor desabroche,

deflagre de esplendor

e encha os olhos do mundo de espanto!

 

Adiam apenas

a explosão telúrica

destas pétalas recalcadas…

Abrir-se-ão cheias de cor

num dia de sol!

 

(In “REQUIEM com os olhos secos”, 1987)

 

Embora não fazendo parte do grupo “Charrua”, eu incluo também Mia Couto, Calane da Silva, entre outros, cujas obras traduzem, de certo modo, aquilo que sustento nesta alocução. A geração “Charrua” versus geração “80”, como um todo, reflectiu e muito bem, nas suas obras, a crise desses anos, caracterizada também pela escassez no mercado de quase tudo, pela desestruturação social, consequentes dos 16 anos de guerra civil.

 

Mais adiante encontramos ainda as gerações literárias  pós “Charrua”,  isto é,  as da década 90 do século XX, e posteriores, que comportam movimentos literários como é o caso do “Xiphefo”, representado por Guita Júnior, e outros autores que, sendo regulares em termos de publicação, deixaram traços dessas crises nas suas obras, tais como Adelino Timóteo, Sangare Okapi, Aurélio Furdela, Lucílio Manjate, Rogério Manjate, Mbate Pedro, Japone Arijuane, Hirondina Joshua, Álvaro Taruma,  entre outros. Estes são alguns desses escritores que nas suas obras estão patentes marcas da busca duma identidade nacional, das contrariedades da vida, dentre as quais, as das guerras sucessivas que o país tem vindo a experienciar na sua história recente.

 

Aqui temos um poema de Japone Arijuane:

 

1.

O machuabo em mim

não é senão um

matchangana disfarçado

a sonhar-se makonde

com engenho da sua arte

se esculpir ndau

n’siro na fé

pintar a crença makwa

adormecida nos chewas,

nyungues e yaos

da minha diáspora.

 

(In: ”Dentro da pedra ou a metamorfose do Silêncio”, 2014)

 

O substracto comum nas literaturas produzidas por estes e outros autores de diferentes gerações e espaços geográficos, em tempos de crise, é o de estabelecer permanentemente rupturas com o seu tempo. Tal como afirma o brasileiro Leomir Cardoso Hilário: “… a negação do mundo vigente abre espaço para a possibilidade de outro mundo. Com esta noção, pretendo reafirmar, no quadro histórico actual marcado pela crise estrutural, a especificidade, potencialidade e relevância da literatura para a produção de uma crítica radical do presente”. O futuro da literatura estará sempre associado aos processos históricos dum país, em particular, ou do mundo, em geral. Eu penso que, sem turbulências sociais e existenciais, pode ser difícil produzir-se literatura, tal como a concebemos. Falo de turbulências visíveis e invisíveis, duas dimensões das crises, a partir das quais o escritor descreve ou reinventa o seu mundo. Vale então sublinhar e prognosticar que a literatura continuará associada ao compasso dos processos e realidades sociais. Assim foi, assim é, e assim será sempre, pois essa é a razão pela qual ela se realiza, consequência directa ou indirecta da perfeita imperfeição do mundo em que vivemos. Quero augurar então que a apartir de 2021, em Moçambique e noutros lugares do mundo, testemunharemos grandes bums literários, como corolário da grande crise epidemiológica que hoje assola a humanidade, causada pela Covid-19.

 

* Intervenção de Armando Artur na  Feira do livro de Maputo.

 

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