
Contornos do conflito África do sul/Ruanda e suas implicações no contexto Moçambicano
Texto: Sérgio dos Céus Nelson#
Muito recentemente acompanhamos o processo de troca de “mimos” entre África do Sul e Ruanda, tendo por base acusações sobre o conflito na República Democrática do Congo. Neste contexto, percebemos que Paul Kagame acusou o homólogo da África do Sul, Cyril Ramaphosa, de divulgar mensagens na imprensa com “distorções, ataques deliberados e até mentiras” sobre as conversas que os dois tiveram sobre a escalada do conflito no leste da RDC, ao que Ramaphosa, num comunicado partilhado nas suas redes sociais, lamentou a perda de 13 militares sul-africanos em vários confrontos entre o Exército congolês e o grupo rebelde Movimento 23 de Março (M23) – sobejamente associado a Kagame.
A dinâmica conflituosa entre a África do Sul e Ruanda emerge como um episódio de relevância significativa nas relações internacionais contemporâneas, evidenciando os complexos mecanismos de poder, interesse nacional e diplomacia. O embate diplomático entre estes dois estados africanos não apenas revela divergências políticas, como também reverbera sobre questões fundamentais de segurança regional, cooperação econômica e estabilidade continental.
O conflito entre África do Sul e Ruanda é marcado por acusações mútuas de ingerência política, actividades de espionagem e assassinatos de opositores exilados. Ruanda, sob a liderança de Paul Kagame, tem sido acusada de perseguir dissidentes no exterior (podendo mencionar Moçambique), inclusive em solo sul-africano, enquanto o governo sul-africano, por sua vez, denunciou interferências ruandesas na sua soberania. Tal contexto remete às análises de Peter Paret, em “Understanding war: Essays on Clausewitz and the History of Military Power” quando discute a distinção entre guerras limitadas e ilimitadas. Neste caso, observa-se uma guerra limitada no domínio diplomático, sem o recurso directo à força militar, mas com estratégias de influência e dissuasão que ecoam os princípios das guerras reais, conforme definidos por Clausewitz.
Outrossim, tal embate diplomático reflecte as complexas heranças históricas e as diferentes abordagens de governança e inserção internacional dos dois Estados. A África do Sul, com sua trajetória de transição democrática e papel activo nas missões de paz no continente, contrasta com Ruanda, que, após genocídio de 1994, adoptou uma política externa assertiva e voltada para a projecção de poder econômico e político na África Oriental.
O conflito sul-africano-ruandês pode ser interpretado à luz dos estudos de segurança internacional, que se debruçam sobre manutenção da ordem e prevenção de conflitos interestatais. A noção de paz negativa, definida por Galtung como a mera ausência de violência directa, é ilustrada na relação entre Pretória e Kigali: há uma ausência de guerra declarada, mas as tensões persistem. Por outro lado, a paz positiva – caracterizada pela cooperação e confiança mútua – permanece um objectivo distante.
Estudos estratégicos sugerem que a segurança de um Estado não se restringe à protecção territorial, mas abrange também resiliência institucional e estabilidade social. O conflito em questão revela o quanto disputas políticas internas podem extrapolar fronteiras, impactando relações externas e exigindo uma diplomacia sofisticada e prudente.
A teoria da interdependência complexa, proposta por Keohane e Nye, também é pertinente nesse contexto. Ela destaca como as relações interestatais não se limitam ao campo militar, mas envolvem redes de cooperação económica, política e social. Assim, as tensões entre África do Sul e Ruanda não devem ser vistas apenas sob a óptica securitária, mas também no âmbito das oportunidades e desafios de integração regional.
É inquestionável que as tensões entre os dois países geram repercussões profundas na política externa sul-africana, tradicionalmente orientada para a construção de pontes e o fortalecimento da União Africana (UA). A África do Sul, ao adoptar uma postura crítica em relação a Ruanda, reitera seu compromisso com os Direitos Humanos e a estabilidade regional. No entanto, essa posição contrasta com a crescente influência económica e política de Ruanda na região dos Grandes Lagos.
O impacto econômico também não pode ser negligenciado, porquanto as relações comerciais, investimentos e cooperação regional são afectados pela deterioração diplomática. O desenvolvimento da Zona de Livre Comércio Continental Africana, por exemplo, depende da harmonização de interesses e da superação de rivalidades históricas, o que torna o conflito um entrave estratégico relevante. Aliás, a desconfiança mútua também compromete o avanço de iniciativas de segurança colectiva, como as forças de prontidão da UA, que dependem de uma coordenação eficiente e de um alinhamento político entre os principais Estados africanos. A fragmentação diplomática prejudica, neste contexto, o potencial do continente em responder, de forma coesa, a desafios como o terrorismo, o tráfico de armas e as migrações forçadas.
Se tivermos que olhar para desafios e possíveis soluções diplomáticas creio que seria pertinente destacar que a superação das tensões entre África do Sul e Ruanda requer uma estratégia multifacetada, que combine esforços diplomáticos bilaterais, mediação regional e o fortalecimento dos mecanismos continentais de resolução de conflitos. A UA e a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) podem desempenhar papéis cruciais nesse processo, promovendo encontros de alto nível e facilitando o diálogo entre as partes envolvidas. Além disso, o investimento em iniciativas de reconciliação e confiança mútua é essencial, como podemos também destacar programas de intercâmbio académico, cooperação econômica e missões diplomáticas conjuntas podem contribuir para a construção de pontes entre os dois países, fomentando uma compreensão mútua e atenuando as desconfianças.
Seria indubitavelmente um erro profundo e imperdoável falarmos deste aparente conflito sem destacarmos os impactos no nosso contexto, visto que Moçambique, enquanto país vizinho da África do Sul e membro da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), não permanece imune aos impactos do conflito entre os dois Estados. A África do Sul é um dos principais parceiros econômicos de Moçambique, com fluxos significativos de comércio, investimentos e trânsito de trabalhadores. As tensões diplomáticas podem, portanto, afectar negativamente o ambiente econômico moçambicano, dada a interdependência com o mercado sul-africano. Além disso, a cooperação regional no combate ao terrorismo, particularmente no norte de Moçambique, pode ser prejudicada se as divergências entre Pretória e Kigali se intensificarem. O Ruanda tem sido um parceiro activo nas operações militares na província de Cabo Delgado, enviando tropas para apoiar o governo moçambicano no combate aos insurgentes. Qualquer deterioração nas relações regionais pode comprometer a continuidade dessa cooperação, dificultando os esforços de estabilização na região.
Politicamente, Moçambique pode ser chamado a desempenhar um papel de mediador, dada sua tradição diplomática de neutralidade e busca pelo consenso regional, até porque o fortalecimento de canais de diálogo entre Ruanda e África do Sul, com o apoio moçambicano, poderia contribuir para a construção de uma solução pacífica e duradoura para as divergências em curso.
A análise do conflito entre África do Sul (uma potência que Ruanda não se pode dar o luxo de tocar) e Ruanda evidencia a complexidade das relações internacionais contemporâneas no continente africano. A superação dessas tensões exige o fortalecimento de mecanismos diplomáticos e o compromisso com uma paz positiva, que vá além da ausência de violência e promova o desenvolvimento sustentável, a justiça social e a integração econômica.
Inspirando-se nos conceitos de Paret sobre a guerra e nas teorias de segurança internacional, compreendo que a estabilidade regional africana depende, sobretudo, da construção de pontes de diálogo e da adopção de políticas externas que priorizem a cooperação em detrimento da rivalidade, porque somente assim será possível transformar os ecos de um conflito diplomático em alicerces sólidos para um futuro de paz e prosperidade compartilhada.
# Sérgio dos Céus Nelson é Jornalista, Pesquisador e Mestrando em Relações Internacionais e Desenvolvimento, com Especialidade em Política Externa