Jornalismo ao pormenor

Condecorado Ungulani apocalíptico

Um dos maiores eventos literários no fim de Agosto que teve lugar em Maputo, pode assumir-se que foi a condecoração de Ungulani Ba Ka Khosa. Quem não o conhece? O evento que muitos caracterizam como sendo “sem comentários” teve um efeito, diga-se, colateral. Era uma espécie de reunião dos animais com chifre de entre os quais políticos, académicos, personalidades do governo.

Na noite da quinta-feira (30 de Agosto), a sala do Centro Cultural Brasil-Moçambique acolheu dois eventos, a condecoração do menino de Inhaminga, o que de forma extensiva quer dizer da literatura em Moçambique, e, o segundo, o reencontro dos macacos velhos, aqueles que passam, ardilosamente, no ramo seco (diz a sabedoria chuabo). Falemos, então, da condecoração, da reunião dos animais com chifre, sem esquecer da obra do homem que a 1 do Agosto fez 61 anos.

A Condecoração

Dias próximos ao evento, algumas contas dos emails, redes sociais incluindo WhatsApp recebiam um comunicado simples, curto e claro. “O embaixador do Brasil, Rodrigo Baene Soares, tem o prazer de convidar para a cerimônia de condecoração do escritor Ungulani Ba Ka Khosa com a ordem do Rio Branco, na quinta-feira, dia 30 de agosto de 2018, às 18:00horas, no Centro Cultural brasil-Moçambique”.’’

Para os brasileiros, a Ordem rio Branco tem um significado especial. Patrono da diplomacia, Rio Branco foi um dos princípais responsáveis pela definição, de maneira pacífica e negociada, das fronteiras de Brasil com seus 10 vizinhos. Isso foi possível porque Rio Branco, assim como os escritores, sabia do poder da palavra como instrumento de transmissão de ideias e de conhecimentos, um poder com o potencial de mudar o rumo da História.

Do lado de cá, em Moçambique, um e outros poderiam questionar, mas porque a condecoração? Porque Ungulani e não um outro escritor?

Adiantemos para exactamente 35minutos depois da hora marcada para o início, nesses minutos o ebaixador sobiu ao palco para ler o discurso de três paginas. Ungulani Ba Ka khosa, ‘’ “é um dos mais importantíssimos escritores moçambicanos.” ’’ E ‘’ “é uma

grande honra para mim ser o portador dessa justa homenagem que o Brasil presta a um ícone da cultura moçambicana. Creio que a obra de Ungulani e sua importância para a literatura dispensam apresentações.” ’’

Rodrigo Soares, reconhece, por exemplo, que Ualalapi, obra escrito por Ungulani quando tinha 30 anos, é uma belíssima obra e foi considerado um dos cem livros mais importantes da literatura africana do século XX. Depois mencionou que inúmeras teses acadêmicas classificam a obra do autor como sendo ‘’ “revolucionária” ’’ tendo, ainda, lembrado que Ungulani foi vencedor de grande Prémio de Ficção Narrativa Moçambicana em 1990 e do Prémio José Craveirinha de Literatura em 2007.

De acordo com o Rodrigo Soares, a obra de Ungulani é imprescindível para compreender profundamente a História de Moçambique. ‘’ “Não creio, por exemplo, que seja possível conhecer a História do vale do Zambeze sem ler Choriro. Nem que seja possível conhecer verdadeiramente a História dos primeiros anos de Moçambique independente sem ler Histórias de Amor e Espanto.

Um dos sucos da obra

Para perceber a ‘’ “raivosa”’’ escrita do actual Secretário da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), o homem que no seu gabinete, talvez por excesso de himildade, nunca senta na sua poltrona, que confirmem os funcionários da AEMO, é de uma escrita simples mas rica como o do conceito básico da História como ciência. Muito porque uma das formações de Ungulani é em Ensino de História. A obra do (nosso) escritor estuda o passado, compreende o presente, e perspectiva o futuro.

É uma obra profética e, se quisermos extender o termo, com sentido apocalíptico. Voltemos para o encontro, precisamente no minuto 15 da referida hora 18 quando o poeta Eduardo Quive, num dos momentos de abertura, lia o texto O último discurso de Ngungunhane, na página 73, da obra com o mesmo nome.

A obra, uma lombada de 182 páginas, foi lançada, Janeiro deste ano, com o pretexto de continuidade da estória de Ngungunanhe, dessa vez para falar das mulheres, mas surgiram leitores atentos que declararam que o facto da obra de Ualalapi, uma espécie de 1°Volume aparecer anexada na presente obra pode ser vista, por um lado, como um bônus uma vez que agora constituem duas obras em uma só, e, por outro, pode ser vista

como uma quebra para a editora no sentido de a obra em anexo ser desnecessária. Voltando, cabe aqui, transcrever excertos do texto O último discurso de Ngungunhane, muito provavelmente, para o deleite do leitor sobre a dimensão apocalíptica do escriba.

‘’Podeis rir, homens (…) mas ficais a saber que a noite voltará a cair nessa terra amaldiçoada que só teve momentos felizes com a chegada dos Ngunis que vos tiraram do abismo infindáveis da cegueira e da devassidão.’’ (..) ‘’Mas ficai sabendo, seus cães, que o vento trará das profundezas dos séculos o dor dos vossos crimes e viveram (ou viverão) a vossa curta vida tentando afastar as imagens infausta dos males’’ ‘’Começareis a odiar os vossos vizinhos, increpando-os pelos males que padecerão nas palhotas sem idade.’’

Ainda nesse ‘’último discurso’’ do personagem criado pelo autor que o historiador Aúrelio Rocha classifica como um dos mais interventores e comprometidos escritores moçambicanos a profecia continua. ‘’Os galos não se meterão com a galinha da vizinha e os ratos dividir-se-ão por casas e roerão os bens de uma só família ao longo de gerações e gerações. E aí, seus cães, não terão coragem de erguer a cabeça.’’ ‘’Não dormireis com as vossas mulheres que se limitarão a olhar-vos e a dizerem as palavras de sempre no tempo programado para a visita. Meses depois vir-vos-ião que a vossa mulher teve um filho da cor de mijo.’’ ‘’Todos ou quase todos aceitarão o novo pastor, mas pela noite adentro muitos irão ao curandeiro e pedirão a raiz contra as balas do inimigo, (…).’’

Como não se maravilhar com a criatividade sufisticada desse artífíce de palavras? Perguntara o embaixador de Brasil em Moçambique para depois concluir. A dinâmica de produção literária de Ungulani tem despertado cada vez mais interesse de Brasil.

Ungulani, o Anfitrião

Como no terreno baixo em tempo em período de chuva e inundação, no centro cultural os participantes surgiram diga-se de repente e quase de todos os lados. Jacinto Veloso, um barrão da cena política no Moçambique pós-independência, Calane da Silva, autor da Xicandarinha na Lenha do Mundo, Tomás Vieira Mário, um dos criadores da lei de Imprensa, Hélder Muteia, antigo Ministro de Agricultura que actualmente ocupa lugar de destaque em organização regional, Jorge Ferrão, respeitado académico que actualmente lidera a UP, entre outros.

Diga-se que uma fotografia em família dos participantes seria quase completamente de macacos velhos, homens que de certa forma estão no cume da montanha do país. Não seria exagero dizer que Ungulani faz parte dos maquinistas da literatura desta pérola. E por falar em Ungulani, já 18Horas a sala estava cheia de gente assídua como ingleses e tranquila como o mar na ausência do vento. Nesse mar de participantes idóneos, tranquilos a única agitação, se é que havia, era a ausência do dono da festa.

13 Minutos das 18Horas Francisco Isaú Cossa não de traje africano, como habitualmente se apresenta, mas de uns factos ajustados, passos cadenciados próprios de um homem bem vestido e, para completar, com um esplendor nos lábios e brilho nos olhos pretos. Aquilo, a entrada triunfal, emocionou a turma e arrancou momentos interessantes de aplausos. O snob não pode resistir a recepção enquanto caminhava para a zona vip levantou as mãos como se se tratasse do rei Michael Jackson, a lenda.

‘’Já estou sem jeito,’’ foi a primeira frase dita quando tomou a palavra. Havia graça naquilo. ‘’ Sobre o facto foi minha mulher que me insistiu a vir assim. Eu bem que exitei,mas ela disse a mim que (eu) estaria no território Brasileiro e é preciso respeitar quando se vai à casa do outro,’’ disse para descontrair o ambiente, talvez porque o momento era mais uma festa que outra coisa. ‘’Até porque agente nem um muçulmano, mas agente veste cofiou.’’ Continuou em jeito de piada, mas com muito contéudo nas entrelinhas.

Grande parte da intervenção seria assim. Frases em jeito de piada mas carregada de conteúdo. Para Ungulani aquele não era momento de discurso, o que podia se notar porque o que falava ‘’cabulava’’ de uns dois pápeis A4 com marca de ter dobrado à medida de Bilhete de Indentidade por forma a meter no bolso. No dia de condecoração Ungulan trazia um discurso dobrado no bolso.

‘’Estou alegre por estar aqui. A honra é imerecida’’ referiu, com uma humildade próprio dos grandes homens. ‘’Dedico a condecoração a essa nova geração de autores.’’

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