Jornalismo ao pormenor

Certezas nas “obras de um destino incerto”

No mar de incertezas que é a vida, há algumas coisas certas. Desde logo, a certeza de que nada é certo. Esta é uma lei universal, mas nem por isso infalível. A morte, por exemplo, não se deixa reger por este princípio. Ela é tão certa quanto a incerteza do destino. Por outro lado, e apesar de certa, a própria morte sucumbe perante a magnificência de uma e outra obra.

As obras eternizam o criador. Foi assim que Samora, Mandela e Luther King, entre outros – mas poucos – atingiram a imortalidade. E será assim, a avaliar pela excelência do seu primeiro trabalho, que Messiah ousará alcançar semelhante façanha no Hip Hop moçambicano.

O lançamento do álbum de estreia de Messiah era dado como certo no ano passado. Quanto mais não fosse pela circunstância de a pré-venda ter sido anunciada em Setembro. Debalde! A certeza esfumou-se e deu lugar a incerteza. Pairava na mente de quem, tal como eu, aguardava ansiosamente pelo CD, o espectro de uma eterna promessa. Afinal, no rap nacional há mais “coming soon’s” que hipócritas no parlamento.

Para Gáudio dos admiradores, eu incluído, o tempo de espera foi curto. O Rapper da Liberdade, aproveitando-se do carnaval, disfarçava-se de herói moçambicano e, a 03 de Fevereiro, disponibilizava o tão aguardado álbum – As Obras de Um Destino Incerto.

Obra a obra construindo o destino

O disco, inteira e superiormente produzido por Amen Hill, é composto por 16 temas, mas é só entre o segundo e o penúltimo que se pode ouvir a voz de Messiah, dado que o intro e o tema de fecho não são de sua autoria. Quer isto dizer que o Rapper só pôde fazer as honras da casa na segunda faixa. Em 02:24 minutos, não se limita a dar as “Boas vindas”, como oferece pistas do que se pode encontrar no Álbum. Em meio a versos de auto elevação, o autor deixa, mesmo que entrelinhas, uma certeza: O trabalho em causa é um exercício de liberdade intelectual que, podendo ser polêmico, – porque frontal e antidogmático – não chamusca em nada a sua integridade. O excerto a seguir, atesta o que aqui foi dito:

“Nova bíblia será escrita por mim/ O profeta Shawall Malick, será um Princípio sem fim/ Sem mandamentos, nem morte por apedrejamento/ Numa história em que Golias mata o Rei Davi”.

Depois das “Boas Vindas”, o LBDiano terá sentido a necessidade de se apresentar ao público. Para tal, recorre ao tema “Celebro Vitórias e Aprendo Com Perdas”. A faixa conta com participação de Henryk nos coros e, nela, Messiah fala de sua trajectória em diversos contextos. Descreve a sua evolução enquanto estudante e profissional, seus afectos, episódios que o marcaram positiva e negativamente e lições que daí emanam. Entre elas, destaca-se a facilidade com que o bem e o mal se podem fundir.

O trecho “… Dizem: Messiah tu mereces irmão/ Mas eu sinto o trovejar da sua raiva em cada aperto de mão” mostra claramente que, mau grado serem forças antagônicas, o bem e o mal são adjacentes.

Esses dois contendores – o bem e o mal – por vezes se confundem, quão tênue é a linha que os separa. Igualmente tênue, e até microscópica, é a fronteira que distingue o comum do normal. Messiah sabe disso, daí a denúncia: “É comum mas não é normal/ Em cerimónias de funerais ocasionam-se relações conjugais” ou “Os hospitais criam agências para funerais/ O  negócio é comum mas os lucros não são normais”.

Inquieta ao “Soldado Clandestino” a passividade com que a sociedade assiste a agressões a que a moral é sujeita. Atitude esta – ou ausência dela – que confere uma aparente normalidade a actos abomináveis. Efectivamente, urge separar as águas. O erro, quando cometido ciclicamente, torna-se comum, mas jamais deixa de ser erro, nem mesmo com o novo acordo ortográfico.

Em “É Comum mas não é normal”, Messiah conta com a companhia do grupo Hell Soldiers e de Nick. Se o segundo foi magistral nos coros, os primeiros não conseguiram fugir da superficialidade e previsibilidade que lhes são características.

 Seja como for, os problemas que acometem o autor de “O Louco conhece a sua loucura” não são nada superficiais. Aliás, são de tal ordem que o levam a orar como um monge. Um monge nada ortodoxo, diga-se. Com Amen Hill como acólito, Messiah dirige-se a um ser poderoso em quem confia cada vez menos. A forma como começa a oração é disso elucidativa. Diz o rapper: “Não sei se faz sentido/ Fazer perguntas, pois não sei se existes, se existes, não sei se tens ouvidos”

O que daqui se extrai é que a suposta dúvida na existência de Deus é falsa. De contrário, “A última oração de um monge” estaria, de facto, desprovida de sentido. O que, na óptica do autor, não faz mesmo sentido é o “aval” que o mesmo Deus dá ao mal, fazendo vista grossa ao sofrimento por que passam os seus filhos. Por isso, questiona: “Onde é que estás quando as crianças padecem de fome/ De pele e ossos, sem voz para gritar teu nome?”

Essencialmente, e a despeito do que revelam as escrituras sagradas, Messiah vê um Deus injusto, que usa de metáforas para enganar os fiéis. O monge da LBD encerra sua oração desvendando o que, na sua opinião, está por detrás do dogmatismo de que se revestem os mistérios divinos: “Mas agora descobri o teu segredo/ A dúvida traz a verdade, eis o teu medo”.

Medo foi o que Messiah e Nero Vil não tiveram para expressar a fraterna ligação entre ambos. A faixa 06 não é mais do que parte da história da clandestin soldiers. Aqui, os “Irmãos Colaço” falam da sua amizade e do início da sua caminhada no movimento hip hop. Não é, de resto, uma música que demande muitos comentários. Nem grandes curiosidades.

Ora, e por falar em curiosidade, uma pergunta comum e normal quando se está diante de uma obra é “Porque este título?” No caso em apreço, os três sons seguintes – “O enigma do futuro”, “Ninguém sabe o fim” e “Destino Incerto” – parecem ter exercido grande influência. Todas elas trazem a certeza da incerteza do amanhã, mesmo que em dimensões diferentes.

Em “O enigma do futuro”, o poeta lamenta a impossibilidade de alterar as coisas menos conseguidas no passado, e que hoje o atormentam. Tem, a espaços, momentos de algum descanso. Mas são sol de pouca dura, tal como sugere este excerto: “No sorriso nasce uma criança/ Mas o adulto que está em mim desperta-me da lembrança”.

A idade adulta arrasta consigo uma série de questões. Todas elas ligadas as expectativas. O mentor do “Código Moral”, outra vez com ajuda de Amen Hill, almeja saber, por exemplo, se será um esposo ou pai responsável. Ser-lhe-ia recomenda uma consulta a um vidente. Mas o próprio está convicto de que “Ninguém Sabe o Fim”.

Messiah chamou All G (e não estará arrependido. Que performance!) para, juntos, pintarem um retrato de suas vidas que só pode ser digna de lamentações. De resto, tal quadro só não é mais deprimente porque a suave voz de Henryk (corista) traz a insofismável certeza de que “a vida não tem um padrão”.  São palavras de alguma esperança. É que, se a vida não tem padrão, há, pelo menos, a certeza de que o fim pode não ser tão trágico como esperariam os dois “pintores”, pois a relação causa-efeito não é, de todo, um dado adquirido.

Se este CD fosse livro, as três musicas (“O enigma do futuro”, “Ninguém sabe o fim” e “Destino Incerto”) compunham um capítulo. O futuro é um enigma, o que faz com que ninguém saiba do fim. E tudo isso acontece porque o “Destino é Incerto”. Nem no amor tal premissa perde validade. Este sentimento, mesmo quando mútuo, nem sempre é a certeza de uma relação duradoura. Que o diga o Messiah, ele que, do alto de uma ponte erguida pela saudade, usa da voz de Baciquete Banze para garantir que seu amor pela ex-companheira será eterno.

Em “Destino Incerto”, Messiah dá mostras de tudo poder fazer por um verdadeiro amor. Disponibilidade emocional que não terá para sustentar uma “Fraudulenta amizade”. Assiste com profunda tristeza a ingratidão de gente supostamente próxima, que, volta e meia, arvora-se em moralista e dita a forma como este deve viver. Um rude atentado à autenticidade e, por isso, vai o esclarecimento: “Dou valor ao meus princípios ideais/ Vivo a minha própria razão, e de ninguém mais”.

Uma fraudulenta amizade é razão mais do que suficiente para legitimar o adágio “antes só que mal acompanhado”. Paradoxalmente, Messiah não quis estar só para descrever quão bom é estar só(?). Em “Poeta Solitário”, são convidados K-Real, Professor Analfabeto e Nick (nos coros) para falarem do que lhes vai à alma em momentos de solidão.

Aqui, é o Prof Analfabeto quem lança o repto. Apesar de analfabeto, esse professor sabe que a solidão é uma faca com dois gumes. Por isso, assegura: “A solidão é amiga da bebida e da droga/ As três juntas levam-te ao hospício numa cova/ Porém ela torna-te mais homem ou mulher/ A decisão está na tua mente, saiba escolher”. Já K-Real e Messiah destacam a inspiração que da solidão resulta. Enquanto o rapper da MPT deixa a “Poesia colorir o preto e branco do meu cenário”, o da MTL descobre, quando solitário, que “Ser poeta é chorar sem dar chance/ Para que as lágrimas denunciem o que te põe em transe”.

Há-de ter sido num desses encontros com a solidão que o “psicólogo social” chegou a uma conclusão trágica. “Não sei mais quem sou” é o nome da décima segunda faixa do álbum. Encarna o artista a imagem de um homem que passa por uma profunda crise existencial. Tal factor, associado ao facto de se sentir incompreendido pelos demais, gera o desvanecimento do sentido da vida.

E porque “A história se repete”, a saga continua na faixa 13. Desta vez, a narrativa faz lembrar o clássico “100 código e 100 moral”. Messiah segue deprimido a ponto de confessar que “as vezes Surpreendo-me pensando em suicídio”. Amargurado, reprime um pai (Deus) a quem responsabiliza pelo seu sofrimento.  Entretanto, a maturidade dá-lhe também algum discernimento, o que lhe permite perceber que também cometeu erros e abster-se de condenar terceiros. Até porque “Julgar é fácil, mesmo sem perceber os motivos pelos quais todos reprovam na mesma escola”.

“…Será difícil amar alguém se não puder amar a mim mesmo”. É com estas palavras que Messiah fecha a faixa anterior. E essa conclusão parece servir de alicerce para “O renascer de um novo amor”. Naquele que é o som mais descontraído do álbum, é através da voz de Amell Hill que Messiah jura amor eterno a sua parceira. Amor “Imortal”, tal e qual Zabo, tio a quem O rapper decidiu homenagear na décima quinta música do disco.

Ao lado de Mamu – das poucas participações femininas – o MC recorda com nostalgia as lembranças do “tio favorito” a quem atribui o epíteto de imortal. A justeza do título compete a família e, já agora, aos “Vataxanisseka”, claque do Ferroviário de Maputo, clube no qual Zabo militou.

Das “obras de um destino incerto” resultam certezas

Um álbum oferece sempre um vasto leque de possibilidades hermenêuticas. O que leva a que qualquer opinião sobre o mesmo seja discutível. Ainda assim, não resisto a assinalar algumas CERTEZAS.

  • “As Obras de Um Destino Incerto” é um CD de inestimável valor social e cultural. De resto, apetece-me até dizer filosófico, dada a forma como, por via de indagações inteligentes, pode conduzir ao saber.
  • Este disco representa a antítese da habitual lógica de composição dos rappers nacionais, muitas vezes eivada de repetições e lugares-comuns. Com este álbum, Messiah transcende e traz abordagens acima do que os sentidos podem alcançar, mostrando que intervenção social está longe de se esgotar na crítica política.
  • Apesar de navegar em temáticas pouco exploradas, Messiah fá-lo com mestria e com uma profundidade oceânica. Por isso mesmo, “As obras de Um Destino Incerto” jamais se acharão descontextualizadas e, futuramente, serão, decerto, recordadas como Clássico, em toda a extensão da palavra.

Em resumo, estamos diante de um liricista requintado. Um poeta que conhece as palavras e manipula-as em seu favor, para que sirvam de almofada aos seus sentimentos. Lamentavelmente, tem a infelicidade de viver num país em que Guebuza é Honoris Causa e Azagaia é marginal.

Deixe uma resposta