Jornalismo ao pormenor

Aqualuz: máquina purifica água nas zonas desfavorecidas, entrevista com Anna Luísa Beserra

 

Dados avançados pelas Nações Unidas (2018) indicam que actualmente 1,8 bilhão de pessoas consomem água de fontes que não são protegidas contra a contaminação por fezes humanas. Mais de 80% das águas residuais geradas por atividades do homem — incluindo o esgoto caseiro — são despejadas no meio ambiente sem ser tratadas ou reutilizadas, sendo que até 2050 a população global terá aumentado em 2 bilhões de indivíduos, e a demanda por água poderá crescer até 30%.  A Associação de Jornalistas Ambientais e de Direitos Humanos (AJADH) em coordenação com o jornal Lupa News conversou com Anna Luísa Beserra, biotecnóloga, primeira brasileira a ganhar o prémio global da ONU sobre meio ambiente.

Dos Céus Nelson : o que significa ser a primeira jovem brasileira a ganhar o prêmio global da ONU sobre meio ambiente? 

ALB: Desde a inscrição na premiação, nunca pensei que tinha chance de ganhar. Foi uma grande surpresa, tanto que tive que ler o e-mail que a ONU enviou várias vezes até acreditar que ganhei.

Dos Céus Nelson: Em que momento da sua vida profissional surge esse prémio?

ALB: Após muito trabalho e esforço, durante mais de seis anos desenvolvendo a tecnologia. Depois de muitos nãos de clientes e outras premiações, de muito sacrifício no desenvolvimento da tecnologia. O ano de 2019 foi marcado por grandes conquistas. 

Dos Céus Nelson: o que o prêmio Jovens Campeões da Terra representa para si, tendo em vista as questões referentes ao meio ambiente?

ALB: Essa é a melhor credibilidade que poderíamos receber. Agora, os clientes não têm mais dúvidas sobre o potencial do produto e o quão impactante ele pode ser na vida das pessoas.

Dos Céus Nelson: Pode fazer um “flashback” para o seu convívio com os laboratórios químicos, tendo em conta o facto de ter sido aos 15 anos que começaste a pensar no seu projecto?

ALB: Desde a época que o Aqualuz surgiu, eu costumava fugir de algumas aulas para o laboratório de Biologia. Gostava de ajudar a professora a preparar as aulas e aprender mais ainda sobre as coisas. Até que ganhei de presente de aniversário de 15 anos um microscópio. Foi o melhor presente que podia ganhar e toda a minha vontade de estudar ciência só se intensificou. 

Dos Céus Nelson: Como funciona o processo da radiação ultravioleta para fazer o tratamento da água?

ALB: O Aqualuz é uma caixa de inox coberta por um vidro, um indicador que muda de corAqualuz: máquina purifica água nas zonas desfavorecidas, entrevista com Anna Luísa Beserra quando a água está pronta, e uma tubulação ligada à cisterna, reservatório usado para armazenar água da chuva ou de caminhão-pipa. Hoje, mais de 1,2 milhão de famílias têm cisternas na região semiárida, são implantadas, em média, 8 mil unidades por ano pelo governo. A água armazenada passa por um filtro (que pode ser trocado anualmente por pedaços de pano de algodão), que retém as partículas sólidas.

Depois, a água é armazenada na caixa de inox, onde ocorre a desinfecção, sem utilizar compostos químicos, apenas com a exposição à radiação solar para eliminar microrganismos e impurezas. O sistema de monitoramento que muda de cor informa quando a água já está pronta para o consumo.

O Aqualuz filtra em média 30 litros de água por dia, com ciclos de filtragem que duram entre duas a quatro horas (considerando um dia ensolarado). A durabilidade é de cerca de 20 anos, com uma manutenção simples de limpeza mensal  com água e sabão, troca do filtro anual, sem precisar de manutenção externa ou energia elétrica, ou seja, dando independência e acesso livre à água potável.

A eficácia é garantida por testes preliminares feitos em laboratório certificado, utilizando parâmetros do Ministério da Saúde, que mostram a redução em 99,9% da presença de bactérias de referência.

Dos Céus Nelson: Olhando a água como um dos direito básico dos indivíduos, o que a motivou a criar o AquaLuz e que impactos espera que o mesmo traga para a vida das comunidades?

ALB: Eu sou de Salvador, capital do estado da Bahia, onde não temos problemas de falta de água, mas aqui a gente sempre estuda muito a falta de acesso à água potável no semiárido. Isso me moveu e inspirou bastante a mudar a realidade das pessoas dessas regiões.

Após a implantação do Aqualuz, temos casos de famílias com crianças que consumiam água contaminada e ficavam doentes, ou seja, não iam para a escola, causando a baixa no rendimento escolar. Depois da implantação do Aqualuz isso reduziu bastante nas áreas contempladas. 

Dos Céus Nelson: Sabe-se que 2013 ganhou uma bolsa para jovens cientistas oferecida pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), do governo federal. Que influência a bolsa teve para seu sucesso profissional e que perspectivas a mesma abriu para as metas futuras?

Aqualuz: máquina purifica água nas zonas desfavorecidas, entrevista com Anna Luísa BeserraALB: Na verdade essa parte da notícia veiculada está incorreta, só ganhei bolsa em 2015 pela FAPESB, a do CNPq foi em 2018. Ela foi essencial.

Dos Céus Nelson: A falta de água potável é visível em diversas partes do mundo, e em Moçambique ainda continua sendo uma realidade. A tecnologia que nos apresenta consegue minimizar ou eliminar os problemas da falta de água potável nas famílias?

ALB: Não vamos eliminar a falta de água. Nosso foco é a falta de água potável, pois é preciso que a família tenha a fonte de água e a cisterna para a implantação do Aqualuz. Hoje estamos em cinco estados no Brasil: Bahia, Alagoas, Pernambuco, Ceará e Rio Grande do Norte e esperamos atingir 900 mil pessoas em cerca de cinco anos, sendo muito optimista. 

Dos Céus Nelson: É ainda interessante o facto de o AquaLuz basear-se na luz solar, sem produtos químicos ou filtros descartáveis. Tendo em conta o facto de épocas frias não apresentarem, necessariamente, radiações solares de elevada intensidade, como no verão, será que há alternativas para a execução do projecto de acordo com o período?

ALB: O cenário perfeito é o semiárido para a metodologia que usamos, que é a desinfecção solar da água. Ou seja, usamos a luz do sol farta no ambiente para matar os microrganismos da água colectada da chuva e armazenada em cisternas que são muito comuns na região. O equipamento não é feito para regiões com baixo índice de luz solar. A chuva nessas regiões ocorre apenas à noite ou em pequenos momentos. São 10 litros por equipamento e é possível reservar a água para uso em até 48h.

 

Dos Céus Nelson: É uma realidade que no Brasil cerca de 35 milhões de pessoas não tem acesso a água potável. Sendo que o Aqualuz é um dispositivo acoplado (em fase de testes) a cisternas, pensa em expandir mais no sentido de, por exemplo, atingir locais onde as pessoas tiram água do poço e/ou rios (para beber)?

ALB: Sim. Há um estudo em andamento para a desinfecção, pois a água do poço pode ter metais pesados e ser salobra. A desinfecção do Aqualuz é somente microbiológica. Não é físico-química. Atualmente, nosso equipamento é voltado para zona rural sem contaminação atmosférica, e é preciso ter uma cisterna de captação e armazenamento de água de chuva (exclusivamente) que funcione com bomba. Implantamos em famílias de baixa renda, fazendo um trabalho social associado à tecnologia de capacitação e treinamento das famílias que vão usar. Depois voltamos para monitorar o equipamento e coletar dados de impacto social e de saúde, educação e economia. 

Dos Céus Nelson: Lê-se, em uma das entrevistas que concedeu, que disse que “até o fim do ano chegaremos a mais 700 [pessoas usando o Aqualuz]”. Como pensa em materializar tal anseio? 

ALB: Estamos buscando montar projectos sociais em parceria com empresas que tenham programas de responsabilidade social para o semiárido. Estamos com 270 pessoas actualmente. A tendência é aumentar para mais de mil até o final desse ano.

Dos Céus Nelson: Sabe-se que pensa em expandir a tecnologia para fora do Brasil. Que vias e que metas pretende alcançar com o tal feito?

ALB: Já estamos planeando uma campanha de financiamento colectivo para expandir para a África. Estamos buscando parcerias. Nossa meta é que o Aqualuz possa quebrar barreiras e atingir todos os locais onde ele possa ser implantado. Queremos desenvolver também dessalinizador e outro filtro mais potente para resolver outros problemas relacionados a água contaminada. 

Dos Céus Nelson: A propósito, qual é a possibilidade de, na implementação do projecto em África, Moçambique ser o primeiro país a beneficiar da iniciativa?

ALB: Estamos decidindo entre Moçambique, Angola e Madagáscar. Essa escolha depende de conseguirmos parceiros para executar o projecto.

 

AJADH: “A meta é democratizar o acesso a agua potável” – lê-se em uma das entrevistas. Qual mensagem pretende transmitir com a ideia de “democratização” da água?

ALB: ‘Democratizar a água’ é promover o acesso à água potável ao maior número de pessoas possível. Por isso, implantamos em famílias de baixa renda, fazendo um trabalho social associado à tecnologia de capacitação e treinamento das famílias que vão usar. Depois voltamos para monitorar o equipamento e coletar dados de impacto social e de saúde, educação e economia. 

AJADH: Tendo em conta o facto de o Aqualuz limpar até 10 litros de água em 4 horas, pode explicar o método do uso da tecnologia? Ou melhor, há perspectivas de se montar um sistema mais amplo, no sentido de fazer o tratamento da água em grande escala?

ALB: Estamos desenvolvendo um equipamento com maior capacidade. A próxima versão será um modelo em que a pessoa conseguirá encaixar diversos equipamentos juntos na cisterna para filtrar 100 litros de água por ciclo. 

Dos Céus Nelson: sabe-se que o mundo tem sido desolado por diversos e graves problemas ambientais, causados maioritariamente pelo Homem. Com a sua formação, de certa forma ligada ao meio ambiente, que mudanças espera implementar para o mundo?

ALB: Espero escalar o meu trabalho na área de acesso à água potável e saneamento, que corresponde ao objetivo de desenvolvimento sustentável 6 da ONU. A missão da startup que fundei aos 17 anos é desenvolver tecnologias hídricas que mudam vidas. O Aqualuz é a primeira delas, mas vamos desenvolver muitas outras tecnologias para resolver diferentes problemas de acesso à água e saneamento no mundo inteiro.Aqualuz: máquina purifica água nas zonas desfavorecidas, entrevista com Anna Luísa Beserra

Dos Céus Nelson: Olhando para o facto de o Aqualuz ser uma invenção de baixo custo, por quanto as famílias adquirem o equipamento? 

ALB: O equipamento não é vendido no varejo. Criamos projectos para as empresas interessadas, com foco em Responsabilidade Social ou órgãos governamentais. A empresa custeia a implantação em uma determinada área e o equipamento é doado às famílias. Monitoramos a qualidade da água, conforme cronograma. 

Dos Céus Nelson: É CEO da Safe Drinking Water for All (SWD), startup cujo principal produto é o Aqualuz. Como tem sido gerir uma equipe de 10 pessoas?

ALB: Temos cerca de 16 membros. Não há só membros na Bahia, mas também no Ceará e do Rio Grande do Norte. Minha única sócia, a Letícia, é do Ceará, por exemplo. São pessoas de áreas distintas e de diferentes gêneros sexuais. Agora estamos tentando organizar mais a equipe para termos um local fixo de trabalho, pois por enquanto é tudo feito à distância. Queremos ter alguns centros em outras cidades, em no máximo dois anos, para podermos entender a demanda específica de cada estado. 

Dos Céus Nelson: Pode descrever os maiores problemas relacionados a água vividos no Brasil?

ALB: No Brasil, temos casos de famílias com crianças que consumem água contaminada e ficam doentes. Depois da implantação do Aqualuz isso reduziu bastante nas áreas contempladas. Acreditamos que a SWD pode ter impacto econômico e social, sim, pois oferece melhor qualidade de vida para essas pessoas. 

Sérgio dos Céus Nelson

Fundador da Associação de Jornalistas Ambientais e de Direitos Humanos – AJADH

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