Secular festa de origem africana resiste no interior do Brasil

Há pelo menos 142 anos, no interior do Brasil, na cidade de Catalão, no estado de Goiás, uma festa de origem africana acontece anualmente. As Congadas são um conjunto de grupos de dançadores que rememoram a história de africanos que foram levados na condição de escravos para o Brasil. Contam os mais velhos que, proibidos de falarem suas línguas e manifestarem suas fés nas senzalas, os negros se organizavam nas fazendas onde eram escravos e faziam a sua festa na qual podiam dançar suas danças ao som de batuques e cantos em suas línguas. Suas canções versavam sobre sua condição de escravos, sobre seus deuses e seu cotidiano. Mitos e rituais diversos aconteciam na realização de sua festa que, para ser realizada nas fazendas, devia ser também a santos católicos. Nesta configuração, a Senhora do Rosário, o São Benedito e Santa Efigênia são os mais recorrentes, por sua história mítica com os negros.

Décadas se passaram desde 1876 (e possivelmente muito antes disso) e a cada ano os herdeiros desta tradição vêm resistindo e realizando, no coração do Brasil, uma grandiosa festa de fé e, sobretudo, de memória da população negra. Em 2018, as Congadas de Catalão contam com 25 ternos (grupos de dançadores e cantadores), divididos em 6 ternos de catopés, 3 moçambiques, três vilões, 1 penacho, 1 marinheiro, 11 congos, além de 6 membros do Reinado e 2 generais. Cada terno se diferencia pelas cores e se organiza em torno do(s) capitão (ães), os caixeiros (que cuidam dos batuques que dão o ritmo com instrumentos diversos e facilmente encontrados nas tradições africanas), os dançadores e as bandeirinhas (meninas que são porta-bandeiras). Os ternos também se diferenciam pelos ritmos e danças, de modo que facilmente se identificam os batidos de um catopé daqueles de um Moçambique ou congo, por exemplo. As canções são semelhantes e ainda que as letras sejam, na sua maioria, inventadas de repente se caracterizam como músicas de lamentação (quando a memória histórica se faz mais marcada), de agradecimento (a pessoas, a entidades religiosas ou outros) ou de alegria diversa, quando parafraseiam o cancioneiro do Brasil e saúdam o seu dia-a-dia e performances de evolução dos ternos.

Muitas canções não se repetirão a cada ano; outras, porém, são cantadas há décadas por todos os ternos como se fossem um apelo à memória e se tornam uma identidade das Congadas. Assim, “Ô meu São benedito/hoje eu vi a sereia do mar/eu joguei o meu barco na água/meus irmãos me ajuda a remar” é uma referência a navios negreiros em que a água tanto é o caminho que leva à escravidão nas terras brasileiras quanto poderia ser para a libertação, a fuga ou morte e, por isso, a ajuda do santo dos pretos é pedida num canto de lamentação. Todos os ternos também cantam o que se tornou verdadeiro hino da histórica conexão entre Brasil e África, empreendida pelo afã da colonização e, por isso, há um Brasil – não apenas formado por pretos, mas por toda gama de mestiços, e brancos – que não nos deixa esquecer que “Eu sou africano / eu vim para o Brasil contra vontade / trabalhar na escravidão / de dia e de noite / sem poder ter liberdade”. Os muitos cantos dos 25 ternos fazem a cidade se embalar nas ondas sonoras deste misto de fé, alegria e história por dez dias, com seus principais rituais no encerramento, que deverá ser no segundo domingo de outubro e a segunda-feira seguinte. As Congadas de Catalão são uma das muitas memórias da população negra no Brasil que resiste.

 

Por: Doutora Maria Helena de Paula


Professora da Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão, natural e residente na cidade de Catalão-Goiás.

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