Morreu José Cabral, mestre da fotografia em Moçambique

Irreverente, individualista, indisciplinado

Perdeu a vida, segunda-feira, 21 de Abril, José Cabral, um dos mestres da fotografia em Moçambique. A Associação Kulungwana, manifesta, “com profunda tristeza, o seu pesar pelo falecimento do fotógrafo moçambicano José Cabral, figura incontornável da cultura nacional e referência na fotografia em Moçambique.”

A sua obra sempre marcada por uma sensibilidade única e um olhar profundamente humanista, é um legado inestimável para as artes visuais em Moçambique e no mundo, refere a associação, e acrescenta que  foi com grande honra que a Kulungwana teve a oportunidade de co-editar uma das suas obras “Moçambique”, perpetuando assim parte do seu percurso artístico.

José Cabral nasceu em 1952 em Lourenço Marques, actualmente Maputo. Aprendeu fotografia com o pai, técnico dos Caminhos de Ferro de Moçambique e amador de fotografia. A partir de 1975 trabalhou como fotógrafo no Instituto Nacional de Cinema; como foto-repórter na Agência de Informação de Moçambique (AIM) e nos jornais Notícias e Domingo, neste com Ricardo Rangel; no departamento de fotografia do Ministério da Agricultura e para a Unicef. De 1986 a 1990 leccionou no Centro de Formação Fotográfica. Viagens e exposições em Itália, 1987; Estados Unidos, 1996 (bolseiro da Mid-American Arts Alliance); Portugal, 1999.

Principais exposições individuais: «Mueda, Planalto Maconde”, 1998, Museu Nacional de Arte, Maputo, e Museu Nacional de Etnologia, Nampula; «As Linhas da Minha Mão», 2006, Associação Moçambicana de Fotografia, AMF – Prémio de carreira (Associação Moçambicana de Empresas de Publicidade e Millennium BIM); «Urban Angels / Anjos Urbanos», 2009, P4 Gallery, Lisboa, e Centro-Cultural Franco -Moçambicano, 2010 Maputo; «Espelhos Quebrados», 2013, AMF. Principais colectivas com catálogos: «Karingana ua Karingana», 1990, Bolonha / Milão; «Iluminando Vidas», 2002/05, Basel / Zurique e depois itinerante.

José Cabral é mestre da fotografia moçambicana, localizável entre a dinâmica colectiva interrompida e a nova geração. Um mestre original, irreverente, individualista, indisciplinado. Por vezes revoltado e irascível, o que as suas fotografias não deixam adivinhar, na serenidade dos seus itinerários e na ternura com que olha as pessoas, todas elas, nos seus inúmeros retratos. «A fotografia passou a ser como uma autorização para ir onde quisesse e fotografar o que me apetecesse (…) fotografar pessoas não é intervir nas suas vidas mas apenas visitá-las» (in «Iluminando Vidas», 2002).

A sua actualidade não era, não é, a da guerra civil, da violência urbana ou da miséria quotidiana  é de um panorama mais profundo e definitivo que se trata, à distância de muita fotografia africana que balança entre a vitimização e o exotismo. Não é um olhar indiferente à realidade do País, pelo contrário – é um olhar interveniente, construtivo, lúcido e livre, e não há lugar na sua obra para retóricas fotográficas formalistas ou essencialistas. O País, Moçambique, está lá sempre, procurado num longo documentário, por vezes metódico, observado através uma outra

forma de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e íntima ou intimista. Fotógrafo culto, informado pela literatura e o convívio literário, viajado, por Itália, Estados Unidos e Portugal, à boleia de alguns prémios e bolsas, ou de convites para exposições, Cabral tem um perfil de excepção e de ruptura, original e crítico.

Para além de ter ensinado no Centro de Formação Fotográfica, desde 1986, com Rangel e ao tempo de Gin Angri e de outros estrangeiros cooperantes, Cabral abre a passagem entre o colectivo que foi a fotografia moçambicana e a emergência dos novos fotógrafos que ensaiam destinos internacionais (primeiro Luís Basto, depois Mário Macilau, Mauro Pinto, Filipe Branquinho) com quem se joga uma segunda afirmação da fotografia de Moçambique, nas novas condições de mercado internacional. Para isso contou a firmeza irredutível do homem e a sua obra, e em especial a reivindicação da autoria desta obra, a diferença autoral, a individualização do artista arriscadamente inscrito no seu meio. Essa foi a outra luta libertária que era preciso travar.

A comparência pública de Cabral nas duas décadas do séc. XXI fez-se em especial através de exposições subtilmente antológicas, situáveis entre um lugar à margem e o reconhecimento público, da imprensa e dos seus pares. Foram sendo construídas com a revelação de muito numerosos inéditos e tiveram um sentido cada vez mais autobiográfico e intimista, que não transparece nos títulos das imagens, sempre discretos, topográficos, mas que confere mais densidade emotiva à objectividade do documentário. Não se trata de um discurso subjectivo e menos ainda narcísico.

Em «As linhas da minha mão», de 2006, na 3ª e última edição do fugaz Photofesta, Encontros Internacionais de Fotografia de Maputo, usou o título de Robert Frank como explícita pista de leitura e como homenagem, firmando a dimensão pessoal de uma galeria de retratos, lugares e episódios, percurso de vida.

«Urban Angels / Anjos Urbanos», 2009, mostrados em Lisboa e Maputo, tomou como tema os seus filhos e os filhos dos outros, as crianças da rua, expondo diferenças de cor e de condição social, intimidades e desigualdades. «São histórias de crianças: eu e elas», disse. Sem estabelecer fronteiras entre o particular, o seu espaço doméstico, e o geral, a observação social, o testemunho é mais contundente. Com essas crianças é a cidade que se percorre, também o mundo rural e a presença deste na malha urbana. O lugar da família e o fotógrafo auto-retratado estão já presentes no mesmo itinerário, e estarão mais na mostra seguinte.

«Espelhos Quebrados», 2012, foi outra revisão da obra, mais desafiadora, ao colocar-se o fotógrafo presente no fotografado, em situação e em cena, em jogo, em risco. Apresentou parte em Lisboa (A Pequena Galeria, 2013) sob o título «De perto», que precisamente refuta a possível distância de um autor-observador alheado do mundo real e das suas circunstâncias.

«Moçambique», este livro, fez-se entre Maputo e Lisboa, seguindo a via aberta pelo autor nestas três exposições e revisitando parte do acervo de negativos, a que se somaram ficheiros digitais de vária proveniência e condição. As cores da Ilha de Moçambique e do livro falhado «A Guerra da Água» (1995, com um filme de Licínio de Azevedo) são mais do que uma experiência, e são uma surpresa.

CabralfotografiaJose
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