Morreu Camal Meragy, o homem que documentou o melhor Carnaval de Moçambique

Camal Achimo Moragy morreu este domingo, 10, em Maputo, vítima de doença. E vai ser sepultado hoje, também em Maputo.

A notícia da morte de Camal Meragy, um dos impulsionadores da cultura na cidade de Quelimane, província a Zambézia, chegou quase como uma bomba e, em pouco tempo, espalhou-se nas redes sociais. Natural de Maputo, Meragy trabalhou na área de cultura no Conselho Autárquico de Quelimane e estava tão envolvido que era a prova concreta de que é possível viver tranquilo em qualquer ponto deste país.

“Camal estava tão estabilizado em Quelimane, do ponto de vista de convivência social que era igual a qualquer um dos filhos legítimos dos chuabos”, comentou um jornalista que escreve para o DW, também a partir da Zambézia, em contacto com o Lupa News.

“Era muito amigo de Manuel de Araújo”, comentou, nas primeiras horas desta manhã, um funcionário do Conselho Autárquico de Quelimane.

Na noite deste domingo, Manuel de Araújo escreveu na rede social, “morreu o arauto do nosso carnaval, aquele que dia e noite lutava e sonhava para que o carnaval de Quelimane não perdesse sua identidade transformando-se num palco de afirmação da singularidade da cultura quelimanense e zambeziana.”

Nos comentários das redes sociais, todos sublinham que o kota Camal Meragy, como era tratado, era uma personalidade de causas nobres, muitas delas ligadas à cultura.

A equipa do Lupa News teve acesso das mãos de Meragy à uma cópia de um ensaio ainda não publicado quando em Dezembro de 2014 (a equipa do Lupa) viajou para Quelimane, tendo como um dos objectivos escrever a História de Carnaval de Quelimane – um trabalho que (ainda) não se concretizou.

Numa das salas de reuniões do Município de Quelimane, Meragy, bastante interactivo, deu uma cópia do ensaio, exaustivo, sobre o carnaval em Quelimane. A seguir, o Lupa News partilha, em exclusivo, alguns trechos do documento com o título “Quelimane é festa, é carnaval!” que dá uma ideia sobre os trabalhos e a dimensão de Camal Meragy.

“Por entre os espaços baldios dos conglomerados bairros suburbanos, pejados de casas maticadas (chapadas com lodo) e cobertas de macubarre (folhas de palmar), os jovens reúnem-se em Cololo, Saguar, Torrone Novo e velho, Pequeno Brasil, Manháua e outros, para definir as estratégias de recrutamento dos melhores bailarinos e bailarinas do bairro e outros e outras que poderão ser roubados, bem como a coreografia e inovações a apresentar, com um único propósito: o de conquistar o primeiro lugar na categoria de Foliões-Bairros do Carnaval da Cidade de Quelimane,” lê-se no primeiro capítulo intitulado “A euforia juvenil suburbana.”

“Patanícua (o mesmo que matori-torri, em changana, ou madhosse, em chuabo), o líder dos aspirantes a componentes do grupo saguar, inicia com a ajuda da Rosema, a criteriosa selecção dos jovens que serão os seus representantes. Estes aguardam com ansiedade a chamada que dentro de momentos irá ter lugar. Alguns visivelmente nervosos, deixam cair bátegas de suor, baixo ao sol tórrido das 14horas, enquanto outros abanam freneticamente as pernas, qual abelha esvoaçando uma beijo-de-mulata. As meninas, essas sim, elevam com o palpitar ofegante dos seus corações as mabeladonas (um tipo de palmar que cresce em pouco tempo, no passado frequente em Quelimane e arredores) hirtas qual tangerinas dum delicioso pomar. Que volúpia…é a fogosidade da juventude!”, continua o documento, um ensaio de 20 páginas aproximadamente, sobre o considerado maior evento cultural do Município de Quelimane, ao longo de muitos anos.

“Enquanto uns cabisbaixos se afastam resmungando que foram matrecados (enganados), outros não escondem o seu alívio e satisfação pela escolha. São 15horas. O primeiro ensaio em grupo vai começar. Num velho amplificador Rocksonic ligados a fios remendados a uma coluna fonkon (todo o produto pirata geralmente fabricado na China), ouvem-se os acordes da banda brasileira Calypso. Numa frenética sincronização de corpos, os bailarinos entregam-se num mexer estonteante de ancas, pernas e mabeladonas. As raízes dos seus ancestrais conduzem-nos para movimentos eróticos, sensuais, como se possuídos de matoa (ataque de epilepsia). Para eles, o carnaval já começou e só termina em Fevereiro, no dia do anúncio dos vencedores e entrega dos prémios.”

Nestes trechos do primeiro capítulo, fica claro que Camal Meragy, natural de Maputo – segundo o documento – e Director de Gabinete de Grandes Eventos no Município de Quelimane, agora Conselho Autárquico de Quelimane, conhece a terra dos Bons Sinais, tanto na urbe, como no subúrbio, a beldade das mulheres, a alegria de espírito, as pequenas intrigas, a música, o trabalho que a festa exige, como se confirma no primeiro parágrafo do segundo capítulo, um registo que certamente há-de ser importante para a História no futuro.

“Jovens em grupos de cinco a seis deambulam pela cidade em direcção a várias empresas, normalmente com folhas de papel digitalizadas e outras não, mas que com clareza se identificam como sendo malta a busca de parcerias para representar empresas sediadas na cidade de cimento. Diariamente o BCI, a EDM, a Mcel, a VODACOM, a Cornelder, a Aquapesca, as Madeiras DAC, a Só Klin, a Reis e Companhia, A Polítecnica, as TDM, o Núcleo Provincial da Luta Contra HIV/SIDA, o Embondeiro, a LAM, a Casa de Frutas, a Zé Pintor Publicidade e muitas outras são bombardeadas por estas legiões, cada um desses grupos convencido que irá vencer, pois os integrantes são espectaculares e o seu orçamento é acessível. Passada uma semana, esta movimentação pela empresa amaina, como sinónimo de que as parcerias já foram estabelecidas.”

Neste capítulo, denominado A cidade de cimento em tumulto, Camal Meragy continua num discurso fotográfico. “Nos dias subsequentes, é possível ouvir nos diferentes cantos da urbe, normalmente no período da tarde, vários sons de samba, pagode e forró, que emerge por entre as frestas das portas dos clubes, salões, quintais e até de terraços. É a juventude urbana ensaiando para a grande festa. A sofriguidão com que os grupos se entregam à causa, é exactamente igual à que se assiste nos bairros suburbanos. Muita vontade, muito querer e muita determinação de vencer. Não é por acaso que o Carnaval de Quelimane, desde o período colonial até hoje, é o melhor de Moçambique.”

Segundo o ensaio, no terceiro capítulo, intitulado “O Conselho Municipal, a sociedade civil e empresas”, por entre dos corredores do edifício branco da edilidade, uma obra-prima da arquitectura colonial, datada de 1887, o Carnaval é a prioridade máxima. Geralmente, o projecto é atempadamente elaborado e entregue aos possíveis parceiros para o respectivo apoio. No gabinete dos grandes eventos municipais, os encontros sucedem-se semanalmente, as inscrições dos grupos concorrentes também geralmente indiciam um carnaval muito participativo. O edil desdobra-se em encontros para tomar pulso ao desenvolvimento dos preparativos.

Relativamente aos quiosques de gastronomia e bebida, vulgo barracas, a sua procura pelos servidores é enorme, pois estas permitem melhorar o seu sustento seminal durante o desenrolar da festa carnavalesca. O Município faz a demarcação dos espaços a atribuir gratuitamente aos municípes, normalmente no perímentro compreendido entre a Avenida da Marginal e a Praça da Independência.

A festa de Carnaval reúne sem vergonha nem preconceitos por exemplo residents do 5° Bairro da Cidade (Namuinho), Sangariveira, Ivagalane, com os dos bairros administrativo, Piloto, Torrone Novo, entre outros. Camal Meragy se apercebe deste elemento de integração valiosissímo para a municipalidade. E documenta nas entrelinhas da penúltima parte do ensaio, capítulo IV, “o arauto de carnaval de Quelimane, como o caracteriza Manuel de Araújo – edil da autarquia-, traz estes aspectos minucioso e cronologicamente.

“Quarta-feira, 11:30min. Faltam duas noites para arrancar o carnaval. No Conselho Municipal, a equipa da carpintaria chefiada por senhor Sambata, arrasta pesadas tribunas para o camião Mercedes do senhor Guégué, popularmente conhecido por Tangwé (corvo, em chuabo). Quatro funcionários vão erguendo do lado da Crustamoz, as latrinas para homens e mulheres. Os mirones que desembocam de Inhassunge, uns de batelão e outros das frágeis almadias carregadas de galinhas cafreais e outros produtos, fazem uma pausa para observar a azáfama que se vive na avenida.”

“É sexta-feira. Apenas algumas horas antecedem a abertura da maior festa anual da cidade. A partir das 12:00H dar-se-á início de tolerância de ponto., decretada ou não pelas autoridades municipais. São 13:20min. Em frente aos Capuchinhos, local do início do corso, começam a surgir os primeiros grupos dos bairros. (…) Dísticos da sua identificação flutuam por entre o calor abrasador e húmido de Fevereiro. É a cidade em festa. A juventude marca presença em massa. Rapazes com cortes de cabelo estoteantes, braços e pernas gimadas (trabalhados em ginásio) vão exibindo a bracura dos seus dentes por entre rasgados sorrisos de euforia. As meninas, essas sim, com os seios hirtos, a maior parte sem soutien, exibem coxas voluptuosas e cinturas de pilão, que se requebram num ritmo compassado de luxúria. Nos passeios que ladeiam o corso, não cabe mais nenhuma agulha. O povo veio a rua ver o seu carnaval.”

No momento de competição, ” O palco está liberto da presença dos altos dignitários. Os grupos concorrentes dão o seu máximo para que no final da competição possam subir ao pódio e conquistar um almejado prémio. Com cadência ritmada pelo som de Martilho da Vila, Ivete Sangalo, Araketu, Calypso, Alcione e outros, os corpos entregam-se num êxtase, qual o gosto de uma primeirinha (aguardente da primeira qualidade) bem destilada. A noite vai passando. Os membros do jurado de forma dissimulada vão fazendo anotações. As primeiras preferências vão surgindo por entre os participantes.”

Segundo o ensaio, na esquina do quiosque das obras públicas surgem os tractores com os seus trabalhadores que vem dar início a limpeza dos locais usados durante a noite. Há que recolher, restos de comida, latas de cervejas e refrescos, guardanapos de papel e os preservativos encontrados e locais dissimulados que denunciam que o sexo esteve presente, que corpos se uniram e deixaram que o mundo rolasse à sua volta.

Nesse trabalho de memória cultural, o quinto e ultimo capítulo, sobre “O choro, o final, a paixão”,, vale a pena reter sobre o delírio total.”O grupo vencedor assalta o palco para receber o prémio das mãos do edil, que não se faz de rogado e ensaia uns passos de dança com os laureados. Depois da atribuição de todos os prémios colectivos e individuais, o rei e a rainha do carnaval têm o privilégio de bailar com o edil, enquanto exaustos mas felizes, os munícipes de Quelimane vão dispersando para as suas casas com a certeza de que no próximo ano estarão de novo, de pedra e cal nesta festa nacional.”Neste registo feito religiosamente sobre o “Pequeno Brasil”, kota Camal, como carinhosamente é tratado, não se esquece do lugar dos ditos perdedores, “entre o pranto e o desalento também iniciam o regresso para casa. A paixão pelo carnaval lhes diz que no próximo ano a sua prestação será melhor.

“Termina assim a festa do carnaval, a festa da cidade de Quelimane, o melhor carnaval de Moçambique”, conclui no seu ensaio, que deixa para os vivos antes da edição e publicação por uma editora para o trânsito dos leitores.

Camal Achimo Meragy passou-nos a cópia desde ensaio pessoalmente, em 2014, numa das salas de reuniões do Município de Quelimane, a propósito de um trabalho gratificante, mas que por imposição de distância (ainda) não escrevemos, documentar  a História de Carnaval de Quelimane. Aquele que seria, inquestionavelmente, uma das principais personalidades para a realização da História de Carnaval de Quelimane, Camal Meragy, desde ontem (domingo 10 de Março), já não está entre os vivos.

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