Terceira Verdade
Os dias nascem de noite
e nunca nunca o contrário
in:Hélder Muteia, 1988
Escritor Moçambicano, nascido na província central da Zambézia a 21 de Setembro de 1960, hoje, sexta-feira, Hélder Muteia faz 61 anos de idade. Os factos de ter nascido na Zambézia e a sua condição de emigrante reflectem algumas característica inseparável da sua personalidade literária.
A ligação à terra, a religião natal- católica, à Moçambique, principalmente nos distritos por onde andou e as gentes que aí encontrou são uma constante nos textos tanto poéticos como em prosa. Nestes textos retrata uma diversidade temática incluindo a identidade cultural, a pobreza, a miséria e a sobrevivência e, igualmente, a saudade, a alegria, as características locais sem deixar de fora a dor, talvez da própria condição de vida que muitas vezes se é obrigado a se aceitar.
Nas suas obras as personagens, entre crianças, mulheres e homens, carregam a mesma estampa de penúria e dor. Aliás, como diria Roseiro Morreira na crónica publicada por Manuel de Araújo, este pensador (Muteia) escreve sobre encanto, da pureza e do respeito entre os seres humanos, de forma simples e construtiva.
Muteia é um exímio observador da vida nos locais frequentados, incluindo da vida rural. Por conhecer as duas realidades geográficas pode-se dizer que é um escritor da vida urbana mas também rural. Sua obra justifica profunda sensibilidade, espiritualidade, conhecimento, ética e moral da Zambézia e do país, pela alegria e pobreza das comunidades nos distritos, por um país de pós-independência até actulmente, e pelo humanismo que define sua personalidade.
Poeta, cronista, contistas autor de seis obras publicadas desde 28 anos, estreou-se em 1988 com obra poética “A Verdade dos Mitos,” “Nhambaro” contos e crónicas (1996), “Sonhos ao Avesso” poesia (2009), ‘’O Barrigudo e Outros Contos” 2018, entre outras.
Notável pela sua técnica narrativa de diálogo com o leitor, simplicidade e sabedoria de conteúdo que inclui na sua poesia fruto de um trabalho intenso, árduo e maduro consegue conferir aos seus textos um ritmo vigoroso e original o que lhe confere ser o dono de uma obra extremamente sugestiva e viva.
Seja por isso que nos dias posteriores ao lançamento da última obra um e outro leitores a partir de Quelimane ligaram para encomendar a obra, justificaram que eram coleccionadores da obra de Muteia. Muito provavelmente a sua reputação não é apenas ao nível do executivo, desagua, igualmente, para o circulo dos escribas. De qualquer modo, da solicitação das obras por parte dos referidos leitores ficou a questão. O que é que há de peculiar na obra do antigo Ministro de Agricultura e Desenvolvimento Rural (200-2004) que comove tanto aos leitores da terra do rio dos Bons Sinais?
Sabe-se, de acordo com alguns especialistas de Literatura, que a obra do autor que nesta sexta-feira (21 de Setembro) comemora 61 anos de idade é de um diálogo profundo sobre realidades simultaneamente familiares e exóticas, repleta de acção, emoção em volta de um romantismo ingênuo, autêntico e suicida, aborda traumas, sacrifícios e sofrimentos da vida quotidiana no país. Mas, como está claro acima, longe de várias interpretações, a ideia é encontrar marcas de uma identidade Zambeziana na obra de Muteia, para perceber alguns aspectos nas entrelinhas.
Uma viagem as obras do autor
No livro poético “Verdades dos Mitos” no poema “A semente de cada um” Se eu pudesse ter nas mãos/(…)/e com elas adubava/o solo que os mulugos nos prometeram. Esse último verso é bastante conhecido entre os leitores do autor nas terras de Quelimane. Mulugo significa Deus, em língua chuabo. Nesse poema está patente uma qualidade dos nativos que o carácter sonhador. No poema “Tiga” há a presença do gosto quelimanense pela natureza. José Norberto, um dos principais artistas plásticos da Zambézia diria que a lua em Quelimane nas noites limpas e frescas detrás das copas dos palmares constitui um belíssimo quadro de arte que falta por pintar. Lá fora/o luar bate com força/as estrelas quase se perdem/e o vento sopra baixinho. Noutra estrofe cá dentro/a solidão impera(…).
E na página 41, no poema “Sétima Verdade” o autor observa a natureza para trazer dois versos proverbiais, quando o caranguejo recua/não o faz por engano. A mesma técnica repete na “oitava verdade” Olhar a serpente/pela cor do seu veneno. Há povos que que por experiência conhecem características e segredos dos animais e os sábios desses povos transformam essas conhecimentos em palavras proverbiais, e, em seguida, escritores como Hélder Muteia imortalizam fazendo assim o papel de guardiões da identidade cultural.
Outra marca identitária até aos anos 90, antes da aldeia global solidificado em grande parte pela televisão e redes sociais, era os convívios dos bairros através das danças no final da tarde ou mesmo a noite. E como Hélder não é historiador mas sim, escritor comprometido, imortaliza isto através dos poemas como é o caso da última estrofe de “Maizinha” Se não fosse o batuque/onde iríamos trocar/nossos beijos, Mazinha? Um dos textos mais fortes do primeiro livro do autor e que marca uma das características peculiares do machuabo deve ser o seu modo lutador, persistente, desafiador, criador de oportunidades mesmo quando é difícil o terreno. Isto o autor consegue trazer com mestria na “Terceira verdade”, página 17, Os dias nascem de noite/e nunca nunca o contrário.
No seu segundo livro de contos e crónicas , Nhambaro publicado em 1996, o autor revela a forma propositada de como envolve a província nos seus escritos. Na sua breve nota introdutória escreve, “Nhambaro”, nome de uma dança zambeziana, foi durante muito tempo o logotipo de grande parte destas crónicas. Note-se que “Nhambaro”, para os seus praticantes não é apenas uma dança. É também uma forma de estar no mundo, um meio de sugerir e receber emoções. Há nela uma espontaneidade e uma recriação que atinge não só o ritual dos gestos mais também o ritual das palavras. Aí se libertam os sentimentos mais escondidos, as críticas mais oportunas, e os elogios mas merecidos à comunidade.”
Aí fica, igualmente, um debate do futuro, que deve ser urgente. Que espaço de Nhambaro, ibondhu, dugudha entre outros ritmos locais numa situação em que a globalização é poderosa e ofusca o que encontra nas comunidades?
No leque de “vestígio da identidade zambeziana em Nhambaro esta patente no texto “cidadão originário,” “sou dos que ainda estão presentes. Sou cidadão originário porque bebo bebida originária (kabanga, kachasso -aguardente, óhêma sura, othega, dugudja – dança tradicional, nipipa – refresco tradicional feito com farinha de arroz). Aqui não existe cerveja e coca-cola. Não sei se aí em Maputo se pode tomar alguma coisa gelada?!” Neste parágrafo está resumida o modus vivendi de gerações em gerações.
Na mesma linha está o texto “Técnico wa Mabassa” onde no primeiro parágrafo o autor, mais uma vez, imortaliza um estilo de vida próprio do zambeziano. “Conheci-o em aventuras zambezianas, com as mãos embrulhadas em quase tudo: concertava relógios, rádios, ferros de engomar, fogões, fechaduras, executava alguns trabalhos de carpintaria, serralharia, mecânica, pintura, redigia requerimentos para camponeses analfabetos, etc. por tudo isto chamavam-lhe “técnico wa mabassa” que em português quer dizer “técnico de serviço”. Na página 77 está o texto “o tempo da manga na manga do tempo” um texto que conta algumas particularidades da dona Aquima, a mesma cujo o nome foi atribuído a um mercado. Mercado de Aquima. Ali há uma mistura interessante da História de Quelimane, Antropologia africana, enfim um registo que os jovens ,principalmente, deviam deliciar. Outro registo histórico é “o pintor” que fala sobre a localidade de Miguirrine. Era preciso mesmo ser não apenas um machuabo mas sim um machuabo de gema para escrever um texto onde os factos acontecem numa localidade desconhecida pelos meios de comunicação social e nas redes que falam da cidade e se esquecem da zona, realmente, rural.
Poderíamos falar de outros títulos que levam o leitor a uma reflexão crítica “No dia em que o padre se apaixonou”. Ou da sua terceira obra, “Sonhos ao Avesso” poesia publicada em 2009. Mas porque o espaço não confere vale a pena ver nas entrelinhas o que “O Barrigudo e Outros Contos’’ sexta e última obra do autor, publicada neste 2018.
Na leitura de O Barrigudo e Outros Contos decifra-se a identidade um machuabo de mania de viver com alcunha, um modo particular de dividir os bens que consegue em grupo, uma peculiar sabedoria na resolução de problemas familiares, a poesia e o romantismo na vida a dois, entre outros aspectos que aqui não importam abordar, como a linguagem (da obra) simples, os contos maioritariamente breves, a colocação das ideias feita com elevada maturidade literária sem esquecer a período da juventude.
Na leitura de O Barrigudo e outros Contos, página sete, no conto O Barrigudo destaca-se nas entrelinhas uma referência forte sobre alcunha. ‘’O Barrigudo’’, saiu-lhe a alcunha, na escola. Afinal, era mesmo Barrigudo!/Mas todos os rapazes estavam avisados:/- “Barrigudo é tua mãe, se queres porrada diz.’’
em O Barrigudo e Outros Contos, obra rica, não faz sentido terminar sem fazer referências de nomes de personagens Matilde Saguate, Bairro Samúguê, aldeia de Miguirrine, a zona de Cana-Badjú, isto pode, de algum modo, clarificar alguns debates sobre apelidos, bastante fortes em alguns círculos imerecido trazer aqui.
Seria injusto demais aqui não trazer uma conversa com um grupo de senhores mais velhos da cidade de Quelimane que numa conversa animada falaram sobre Cana-Badjú. Nome que indirectamente aparece em alguns livros do autor. Mesmo não tendo ‘’alto nível de intelectualidade’’ as ditas ‘’bibliotecas vivas’’ explicaram que Cana-Badjú é uma palavra chuabo que em português significa sem veste. O nome foi criado pelo facto de ali existir uma loja onde vendia-se roupa e, simultaneamente, alí ser a fronteira entre a cidade propriamente dita e bairros arredores.
A História deve ser enriquecida com depoimentos de género e Hélder Muteia resgata, com efeito, o que a História e o Jornalismo, muitas vezes, não abordam, cumprindo-se assim, com um dos papéis fundamentais da literatura.
Os que vivem fora da cidade podiam não usar roupa convencional nem sapato e circularem à vontade. Mas a partir dali para cidade era obrigatório que usassem roupa nem que para isso fosse necessário que comprassem naquela loja, localizada nas proximidades do Cemitério dos Mahometanos, entre mercado do Aquima e Cemitério da Saudade, ao longo da avenida Július Nherere. Os mais velhos avançaram que muito provavelmente foi por ali ser a fronteira entre os que usavam roupa, para circular na cidade, e os que não usavam, que não podia circular, que gente do subúrbio deu nome de Cana-Badjú, isto é, sem veste, limite onde dalí para zona rural era tolerável não usar roupa e dalí para a zona da cidade já não era tolerado.
Nesta “cartografia”, incompleta da obra, constata-se que Hélder Muteia faz parte de conjuntos de personalidades cuja dimensão atravessou fronteira provincial, para nacional e internacional, mas nunca deixou a nobre responsabilidade de guardião da identidade zambeziana.