Liz!

Por: Laurindos Macuácua

Gosto de ouvir boleros sentimentais, os que parecem ressoar nas paixões evocadas pelos grandes mestres da ficção. Lembram-me o tempo em que perambulava de bordel em bordel, dormindo com mulheres descartáveis! E duvido que mesmo a mais longa e diligente das vidas bastaria para contar o que vivi, até que conheci a Liz, uma mulata altiva, de olhos dourados e cruéis. Ameia-a perdidamente e ela não ficou indiferente aos meus sentimentos.O nosso amor era muito forte que era capaz de incendiar uma cidade!

Ontem sonhei com a Liz. Talvez seja por isso que me propus a narrar, do jeito que conseguir, as memórias do meu grande amor. Levantei, como sempre, às cinco da manhã. Bebi uma caneca de café e vesti a roupa de ficar em casa para escrever esta prosa canhestra.

Conheci-a no The Crypt Jazz, um bar com música ao vivo todas às noites do fim-de-semana. O menu é invariável: Jazz. Localiza-se em 5 Wale Street, Cape Town St. George’s Cathedral, Cidade do Cabo. Passei lá todas as noites mais belas da minha vida. Tal como o fantástico e obscuro submundo de uma boate parisiense, a Moulin Rouge, seduziu o poeta, The Crypt Jazz enlouqueceu-me com o seu glamoroso ambiente que acabei sucumbindo à beleza da Liz e desde então era um adeus ao meu então refúgio do sexo, drogas e farra!

Desde que a Liz me abandonou, fazia anos que estava na santa paz comigo mesmo, dedicando-me à releitura diária dos meus clássicos e a meus programas privados de música culta, mas ontem, sem aviso prévio, ela evadiu os meus sonhos. Estava bela e abriu passagem com o seu andar ligeiro por entre as mesas do bar e colocou-se à minha frente, olhando-me nos olhos com o sorriso malicioso dos seus melhores dias e, antes que eu pudesse reagir, disse-me:- Olá, meu amor. Há quanto tempo? Voulez-vous coucher avec moi?

Senti o peito oprimido. Ansiava por uma bebida forte. Talvez o absinto- a fada verde- que enlouqueceu o poeta Rimbaud. O meu coração dava-me golpes fortes que tive que tapar a boca com ambas as mãos e usando toda a minha força para não sair-me e rolar mesa afora. Ele havia se enchido de uma espuma ácida que me atrapalhava para respirar!

Eu sempre celebrei a Liz. Todos os dias. Arranjava qualquer motivo para celebrá-la. Com ela todos os dias eram feriados. Daqueles fortes como o quatorze Juillet (14 de Julho), a tomada de Bastilha!

Tenho um breve recordatório em que constam o nome, a idade e as posições usadas com determinadas mulheres. É que nunca me deitei com mulher alguma sem pagar. Não porque todas fossem do ofício, mas sempre arranjei artimanhas para convencê-las a receber o dinheiro. Paguei muitas bacanais a céu aberto, regadas de vinho verde e drogas. Mas a Liz…foi ao me ver nos seus olhos diáfanos e cruéis que mudei de vida!

Liz era de uma egrégia cultura: lia Yasunari Kawabata. Ouvia Johann Sebastian Bach. Ah, as cantatas de Bach! Nada é mais difícil de definir ou explicar que o estilo vocal de Bach!

Liz apareceu-me ontem no sonho. Tudo parecia real. Ela examinava-me com intensidade alarmante. A Lua cheia parecia ter chegado ao centro do céu. O mundo, o nosso mundo, estava submerso em águas verdes. Ouvia-se uma canção de amores malogrados. Ah, o bolero! Há muito que não escutava Ravel…

E de repente uma cigarra começou a apitar desalmadamente- até entende-se porque estamos a entrar para o Verão. Mas por que cantou de noite e logo no meu sonho? A cigarra acordou-me. Não cheguei a beijar a Liz. Queria ter podido contemplá-la dormindo nua e desamparada naquela cama grande que dividíamos. Queria ter podido olha-la debaixo da luz daquele lustre que não poupava nenhum detalhe do seu corpo nu. Maldita cigarra!

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