Por: Severino Ngoenha, Eva Trindade, Geveraz Amaral, José Maria Langa, Carlos Carvalho
Em 1550, o então Imperador Espanhol, Carlos V, mandou parar com a colonização do novo mundo e convocou um debate em volta do estatuto dos índios: são homens, podem ser convertidos ao Cristianismo? Esvaziou-se um mosteiro, convocaram-se representantes das principais potências europeias. Eminentes teólogos, juristas, filósofos estiveram reunidos para debater e estatuir sobre se os índios eram ou não humanos. A Controvérsia de Valladolid constituiu o primeiro debate dos direitos humanos, antes mesmo das revoluções americana e francesa e da famosa declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1789.
É que as Américas, os seus habitantes e civilizações estavam a sucumbir a uma pandemia inédita, não dos vírus biológicos para os quais os índios não tinham imunidade, mas das práticas europeias de dominação, escravização, torturas, massacres, chacinas, mortes ‘desportivas’, que constituíam as principais manifestações do vírus dessa pandemia de então, para o qual, infelizmente, até aos dias de hoje não se encontrou imunização e se prolonga sob formas diversas e sofisticadas.
No ringue da controvérsia, os protagonistas principais eram um teólogo, o bispo Bartolomeu De Las Casas, e um filósofo humanista (?), Juan Ginés de Sepúlveda.
Os debates duraram dois anos, numa disputa argumentativa acérrima, com a Teoria de Aristóteles sobre o Homem e a Legitimidade da escravidão, que se encontram no livro A Política, a servirem de pano de fundo. Porém, foi um outro Aristóteles que prevaleceu e determinou o êxito do debate.
O Estagirita, não só servia nesses tempos de referência áurea (com o impulso que o tomismo fez do seu pensamento), mas também dele acabava de se descobrir um manuscrito inédito (homo ridens) no qual o magíster defendia que a diferença específica do homem em relação aos outros animais residia na sua faculdade de rir: afinal, o riso é a manifestação da alma.
Diante da derrota que se ia paulatinamente consumando face à retorica sofista de Sepúlveda, Las Casas recorre ao seu último argumento: faz entrar na sala dois índios que ele trouxera consigo das Américas. A magna plateia nunca vira antes índios. Nessa época não havia nem televisão nem celulares ou fotografias. Tudo o que aquela gente sabia dos índios eram as crónicas, tendenciosas, dos viajadores e missionários, as fake news da época. Para além da curiosidade que suscitaram, o seu tremor e fragilidade serviram de pretexto para o sofista Sepúlveda desferrar novos ataques contra a humanidade dos índios: são fracos, sem virilidade, tremem, o que é traço distintivo da sua inferioridade e não humanidade.
O Bispo Las Casas replicou relevando, furioso, que toda a plateia era constituída de pessoas agasalhadas, e os índios eram os únicos, na sala, vestidos de tangas, no inverno frio da Espanha. Tudo isto foi dito, num tom áspero, agressivo e desesperado, acompanhado de gestos violentos contra o Sepúlveda, o que levou os índios a se entreolharem e, divertidos pelo espectáculo, a esboçarem um sorriso.
Aquele sorriso foi mais forte que todos os argumentos até então esgrimidos: era a manifestação inequívoca de que os índios têm alma e por isso são humanos, como tinha escrito o magíster Aristóteles. Aquele riso humanizador, representou a única participação dos índios na interação que decorria naquela sala. Os índios tomaram assim parte do debate em sua defesa, foram daquele modo activos, e a força do argumento foi tal que levou Domingo Soto, que presidia ao debate, a sentenciar: “Contra facta, argumenta non habent” (contra factos não há argumentos). Grande Aristóteles, a sua simples invocação provocou silêncio, fez cessar as polémicas, os dissensos: magister dixit.
O pobre Genís de Sepúlveda, lançou-se a uma petição desesperada, patética mas reveladora do que estava em jogo desde o início: o futuro da Espanha, se ela não pudesse continuar a usar os índios nos campos de trabalho. Num argumento a dominem, do qual o cardeal não podia ficar insensível, Sepúlveda rematou: como poderá a Espanha, sem meios e recursos, garantir a evangelização da América?
O argumento de Sepúlveda transitava assim do campo filosófico e jurídico para o campo económico, e passava a subordinar a humanidade dos índios aos interesses da Espanha, com uma cobertura sofista da ius predicanda evangelium, dos sábios de Salamanca (ius inventionis). Subordinavam-se os estatutos do ser humano, a dignidade, e até a vida, aos interesses económicos. Então o Magíster deixava de ser Aristóteles e passavam a ser os mercantilistas Martín de Azpilicueta e Jakob Fugger ( substituidos mais tarde – duzentos anos depois – por Adam Smith, David Ricardo e os seus ilustres sucessores).
O escritor italiano Italo Calvino, numa bonita ficção, acusa Montezuma e os Incas de serem responsáveis da pandemia com que o ocidente, dito moderno, continua a fazer sucumbir o mundo inteiro: vocês, que eram muitos, é que permitiram que Cortez e o seu pequeno grupelho de legionários perdidos vos oprimissem e ditassem as leis das vossas vidas; se tivessem dado uma boa tareia a esses maltrapilhos, a Europa não se teria comportado antropofagicamente (como continua a fazê-lo) com o conjunto dos povos do mundo.
Os vencedores da segunda guerra mundial criaram instituições, para a sua própria hegemonia sobre o mundo, as Nações Unidas, onde se outorgaram, contra todos os princípios democráticos, o direito a veto; para garantirem a subalternização das economias dos pobres aos interesses dos ricos criaram o FMI, e o Banco Mundial. Hoje, com muita probabilidade, vão se fazer novos desenhos para o pós-corona vírus, com o G7, G20, G7 +1, União Europeia, os Estados Unidos, a China, o Japão, todos efervescentes, a construir cenários de pós-coronavírus no qual reservarão um papel subserviente para os outros. Os nossos Montezuma (lideranças políticas, económicas e intelectuais) e nós os novos Incas (povos) ainda hoje ficamos à espera que os Corteses (ocidentais) nos ditem as leis das nossas vidas.
As head quotas globais estão numa profusão de desenhos a geometrias variáveis daquilo de que o mundo pós-coronavírus será feito: o governo japonês, por exemplo, paga para repatriar todas empresas nipónicas que se encontram na China; os franceses querem que a produção das suas principais indústrias estejam no seu território; os europeus querem uma economia e uma indústria eurocentrada. Isso não é surpreendente. O que é surpreendente é o nosso silêncio, a nossa demissão, o nosso montezumismo. Deixamo-nos fagocitar por lirismos anti-Trump e/ou anti-Bolsonaro até nos deixarmos cair na ratoeira, quem sabe, provocada, do antiracismo ocasional do JorgeFloydismo e na destruição de estátuas de ditadores, esclavagistas e racistas do passado. O desafio não está lá. O desafio está nos racismos em construção, nas estátuas em edificação que riscam de fazer anular todas as nossas independências, as nossas liberdades conquistadas com suor, sangue e sacrifício.
No único período da história de Moçambique em que nos comportámos com veemência, unidade e determinação, alcançámos a independência de que celebrámos o quadragésimo quinto aniversario. Face ao coronavírus, sabemos ter necessidade de uma vacina, mas paradoxalmente, renunciamos a uma busca e, num sinal contraditório, fechamos as universidades, os laboratórios, únicos lugares que poderiam, em teoria, produzi-la; submetemos a nossa salvação ao saber e à vontade de outros, ao mesmo tempo que nos dizemos iguais e independentes deles.
O que é surpreendente e preocupante é o nosso silêncio, a nossa inexistência, de Moçambique, da África Austral, da União africana, do não global; parecemos Montezumas e Incas, determinados a aceitar que Cortez e os novos espanhóis nos ditem as regras de funcionamento e de relacionamento no novo mundo. Estão longe os tempos do Pan-africanismo, da Negritude, do Não-Alinhamento, da OUA, do CONCP, dos Países da Linha da Frente e dos jovens moçambicanos que, desafiando tudo e todos, decretaram uma insurreição geral armada para a libertação total e completa de Moçambique.
Marginalizamos as responsabilidades das elites políticas, económicas, sociais e intelectuais, negligenciamos a identificação de proposta de espaços de acção política e económica alternativos que incrementem as nossas liberdades e direitos na nova configuração do mundo em desenho.
Fazer que Moçambique possa acontecer é repensarmos nisto e reivindicar esse lugar para nós no espaço mundo, é não ficar somente à espera das doações das vacinas da Oxford, ou ainda que os outros façam e ditem o que tem que ser as nossas vidas no futuro que virá.
Em 1551 (ano em que terminou a controvérsia do Valladolid) o dominicano Domingo de Soto que presidia aos debates, não se limitou a humanizar os índios mas também acomodou as exigências dos espanhóis: vocês já começaram a importar negros da África, continuem. Ao protesto de Las Casas: eles também são homens, o Cardeal Soto perentório replicou: agora exageras!
Desde então, para além da legitimação jurídica (de um direito que se apelava à transcendência) da escravatura, dizer a humanidade do negro, apesar das diferentes declarações, continua a ser um exagero. Em Durban, portugueses e espanhóis negaram que a escravatura fosse um crime contra a humanidade. Por isso, as fábricas na América (Ângela Davis) as embaixadas em Genebra, o tráfico de pessoas, órgãos, prostituição de negros continuam na ordem do dia. Os mais sortudos de entre nós só são domésticos, magaizas ou emigrantes com direito à prova de vida no Mediterrâneo
Nós, moçambicanos, continuamos a dizer, justamente, “a luta continua”. Porém, a luta não pode ser um ubuntu, flatus vocis, mas a inscrição na pauta pós-corona das condições da nossa pertença ao mundo. A questão não é descentralizar ou provincializar o ocidente (pós-colonialismo, desobediência epistemológica), mas recentrar Moçambique, recolocar a África no núcleo da história-mundo em construção.
Durante o processo de reconciliação sul africana, na casa de Desmond Tutu, na Cidade do Cabo, estava pendurado um dístico com os seguintes dizeres: how to turn human wrongs into human rights.
À acusação de Italo Calvino (na sua ficção) Montezuma respondera: queres que seja eu a resolver os vossos demónios; eles são vossos e cabe a vocês resolvê-los. Também cabe a nós resolver os nossos demónios: o frelicentrismo, o guerrelhismo, o changanismo e todos os outros demónios e ismos que nos habitam.
É um dever humano fazer o confinamento, retirar as pessoas dos mercados e dos passeios para garantir, a elas e aos demais, o primeiro e o principal direito humano, a vida. Mas é também um dever humano garantir-lhes o sustento para que o direito à vida não lhes seja negado pela maior pandemia moçambicana: a fome.
A realização desta metanóia e o combate aos nossos outros demónios (pedintismo, mendiguismos, guerras contínuas, egocentrismos, partitocentrismos, dólarocratismos, guerrinhas políticas e militares), pôr ordem na casa moçambicana, têm que ser entendidas como deveres humanos. Só assim poderemos levantar a cabeça e, responsavelmente, assumir as nossas obrigações na construção do futuro que queremos para nós.
Na luta por nos autogovernarmos, temos que eliminar o que nos impede de sorrir, para patentear a nossa humanidade, para manifestar a nossa pugnacidade. Os demónios que transportamos, enfadonhamente, só servem para diminuir as nossas independências, para aumentar as nossas fragilidades, para reforçar a nossa dependência que, paulatinamente, nos transforma numa nação banana, num país habitado por cleptoselvagens que desde há 45 anos impedem a maioria de sorrir, de manifestar a própria alma e viver a sua humanidade.