Apesar dos avanços em matéria de direitos humanos e igualdade de género, milhares de meninas e mulheres continuam a ser submetidas à Mutilação Genital Feminina (MGF) nas províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa. A prática — que inclui o alongamento e corte dos pequenos lábios — é mantida por razões culturais, mas provoca dor física, traumas psicológicos e violações à autodeterminação do corpo feminino. Especialistas da saúde, juristas e activistas alertam: tradição não pode ser escudo para a violência.
Jesuína Pascoal l Norte de Moçambique
São quatro níveis de mutilação. Tudo que tem haver com alterações não médicas no órgão genital feminino é tido como mutilação. Há níveis altos e baixos de mutilação.
Tipo I — Clitoridectomia — é a remoção parcial ou total do clitóris (uma parte pequena, sensível e erétil dos genitais femininos) e, em casos muito raros, apenas o prepúcio do clitóris.
Tipo II — Excisão — esta é a remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios (as dobras interiores da vulva), com ou sem a remoção dos grandes lábios (as dobras exteriores da pele da vulva).
Tipo III — Infibulação ou Excisão Faraónica. A Infibulação é considerada a pior das formas de MGF.
As pernas devem ficar amarradas durante duas ou seis semanas. Assim, a vulva desaparece, ficando perfeitamente lisa. Por ocasião do casamento a mulher será “aberta” pelo marido (usando por vezes uma faca) ou por uma “matrona”, mulher mais experiente no assunto. Mais tarde, quando se tem o primeiro filho, essa abertura é aumentada para permitir o parto, sempre difícil porque o tecido cicatricial não distende. Algumas vezes, após cada nascimento, a mulher é novamente infibulada.
Tipo IV — Isto inclui todos os outros procedimentos prejudiciais para a genitália feminina para fins não médicos como picar, perfurar, incisar, raspar e cauterizar a área genital.
Na zona norte de Moçambique verificam-se o tipo II Excisão o e Tipo IV, com predominância do alongamento de pequenos lábios vaginais- Tipo IV.
Tradição que molda corpos desde a infância
Com raízes culturais profundas, a Mutilação Genital Feminina (MGF), especialmente o alongamento e mutilação dos pequenos lábios, ainda é praticada em comunidades do norte de Moçambique. A matrona Catarina Paulo, residente em Namicopo, Nampula, afirma que a prática é realizada tradicionalmente entre os 9 e os 12 anos, quando “os tecidos genitais são mais flexíveis”. Segundo ela, o costume está mais ligado à estética e à feminilidade do que à funcionalidade sexual.
Catarina reconhece que, embora já tenham ocorrido complicações de saúde no passado, como infecções e corrimentos vaginais, hoje a prática é feita “com mais cuidado”. No entanto, a sua persistência levanta preocupações crescentes no campo da saúde pública e dos direitos humanos.
Perigos médicos e ausência de benefícios clínicos
Para o médico Simão Nicaca, a MGF é uma agressão sem qualquer benefício médico e com riscos severos: infecções, infertilidade e até morte. “Muitas vezes, a mutilação é feita com instrumentos não esterilizados, o que leva a septicemias que não são tratadas por medo, tabu ou pressão social.”
Nicaca defende a educação sexual como forma de prevenção, envolvendo famílias, escolas e líderes comunitários. “Precisamos desmistificar o prazer masculino como razão para ferir o corpo feminino.”
Cicatrizes emocionais e bloqueios psicológicos
Judite Adriano Colombo, psicóloga e técnica de saúde, natural de Nampula, alerta para as consequências psicológicas e sociais profundas da Mutilação Genital Feminina (MGF), uma prática tradicional que continua a afectar milhares de meninas e mulheres em Moçambique.
Com base na sua experiência profissional, a psicóloga relata que a MGF — geralmente realizada sem o consentimento das raparigas — pode causar depressão, ansiedade, transtornos bipolares, baixa auto-estima e bloqueios na sexualidade e identidade feminina. “Meninas são pressionadas desde cedo com frases como ‘se não alongares, não terás um bom casamento’.”
Durante o parto, muitas mulheres enfrentam vergonha e medo, o que compromete o acesso à saúde. Judite sublinha que a maioria das mulheres que atendeu foi mutilada contra a sua vontade. “A mulher deve ser livre para poder decidir sobre o seu corpo sem medo ou imposições culturais.”
Resistência cultural e silêncio institucional
Hiris Jamal, advogada da UNICEF, e coordenadora de voluntários da ColdYou CUP, afirma que combater a MGF é difícil devido à resistência cultural. “Em muitas comunidades, nem se pode debater o tema, por ser visto como ataque à tradição. “A ausência de dados estatísticos também dificulta a intervenção eficaz.
Hiris define a mutilação genital feminina como: “qualquer alteração ou lesão no órgão genital feminino sem finalidade médica, geralmente por razões culturais, sociais ou religiosas.
A jovem Coordenadora da ColdYou Cup diz que: “nas províncias de Nampula, Cabo Delgado e Niassa, a prática surge nos ritos de iniciação após a menarca, onde as meninas são incentivadas a alongar os pequenos lábios, sob a promessa de proporcionar mais prazer ao parceiro”. Este tipo de prática, pode estar relacionado com uniões prematuras e experiências sexuais precoces.
Natural de Nampula, Hiris partilha que só evitou a prática graças ao acesso antempado à informação. “Alterar o corpo feminino é rebeldia contra algo que já é perfeito”, diz, defendendo que o conhecimento dá poder de escolha.
Moçambique precisa de uma lei que criminalize a Mutilação Genital Feminina
Edmane Adriano, advogado moçambicano, sublinha que embora existam compromissos internacionais ratificados pelo país, como a Convenção sobre os Direitos Humanos, não há no ordenamento jurídico nacional uma disposição que, de forma clara, tipifique e puna a prática da MGF. “Como não existe uma norma penal específica que preveja a MGF como crime, essa prática continua fora do alcance directo do sistema de justiça penal.”
Do ponto de vista jurídico, Edmane explica que Moçambique se rege pelo princípio da tipicidade, segundo o qual só se pode considerar crime aquilo que está previsto e definido na lei.
Para o advogado, é urgente criar uma lei que penalize não só quem executa, mas também quem consente ou facilita a prática. “Se quisermos ver as mulheres livres da mutilação genital feminina, é necessário que exista uma lei clara, com punições bem definidas, sensibilização da sociedade e um compromisso sério das instituições do Estado e da sociedade civil.” A Constituição da República de Moçambique, prevê meios legais para que a sociedade pressione por essa mudança.
Dados da ONU, UNFPA, e UNICEF entre outros
A Mutilação Genital Feminina é reconhecida internacionalmente como uma violação dos direitos humanos das mulheres e raparigas. A ONU estima que mais de 200 milhões de mulheres no mundo tenham sido submetidas a algum tipo de MGF, sobretudo em África, Ásia e partes do Médio Oriente. Em Moçambique, apesar da falta de dados concretos, relatórios de organizações como o UNICEF e a UNFPA apontam para a persistência do fenómeno, principalmente em regiões com forte presença de ritos tradicionais.
A prática continua ligada à ideia de pureza, feminilidade e preparação para o casamento, mas especialistas destacam que essas justificações culturais não podem sobrepor-se ao direito à integridade física e psicológica das mulheres.
A Mutilação Genital Feminina continua a ser uma ferida aberta que a sociedade moçambicana precisa de enfrentar. A tradição não pode servir de abrigo para práticas que causam dor, silenciam mulheres e limitam escolhas. A mudança começa pelo reconhecimento do problema e pela coragem de legislar contra ele. Lupa News