Por Bernardo Soares | Lupa News, 09 de Julho de 2025
Era uma manhã como tantas outras em Maputo. O sol mal tinha se firmando no céu, quando o chapa que fazia a habitual rota Malhazine/Museu recuou entre Ronil e o Ponto Final enquanto tentava se safar de outro condutor. Improvisava ali, mesmo à beira do cemitério, um ponto conhecido pelos passageiros como território do inesperado. nesta quarta-feira, 09 de Julho de 2025, o que se viu ultrapassou o que a maioria imaginava possível.
De repente, um grito rasgou o ar abafado dentro do chapa. “Meu cabelo!” — gritou uma senhora, a mão direita agarrando em vão a cabeça recém-despojada da sua peruca. O grito virou lamento, lamento virou silêncio espantado. Um jovem havia simplesmente esticado o braço pela janela do transporte, arrancado a peruca como quem apanha fruta madura, e num fôlego de segundos, correu — como se as sombras o guiassem — até subir o muro do cemitério e desaparecer entre os túmulos.
Nenhum agente da polícia à vista. Nenhum grito de “pega ladrão” teve efeito. O chapa seguiu viagem, mais pesado do que antes, não pelo número de passageiros, mas pelo fardo da impotência partilhada.
Dentro do carro, desabafos. Uns falavam de medo. Outros, de raiva. Muitos, de resignação. “Já nem é só a bolsa ou o telefone… agora o cabelo nos roubam”, murmurou uma senhora, com olhos marejados. “E o pior”, respondeu outro passageiro, “é que dizem que alguns desses marginais trabalham com a polícia. Como é que conseguem fugir tão facilmente, mesmo quando há agentes por perto?”
Aquele trecho entre Ronil e o Ponto Final transformou-se num corredor de horror, onde os mortos descansam do lado esquerdo, e os vivos circulam com o coração nas mãos. Os assaltos já não são apenas noturnos. A luz do dia já não assusta os que vivem na penumbra. É ali, em plena luz, que a crueldade salta pela janela, arranca cabelos, pastas, carteiras — e, muitas vezes, a dignidade.
À noite, a história é ainda mais tenebrosa. Quem ousa passar ali a pé, corre o risco de não chegar ao destino. Jovens armados com facas, pedaços de ferro ou simples pedras emboscam qualquer transeunte. Alguns batem, outros apedrejam. Já houve relatos de violações. De mortes. De desaparecimentos inexplicáveis. E tudo se repete como um ritual silencioso que a cidade finge não ver.
A Polícia da República de Moçambique (PRM) já foi alertada, várias vezes. Denúncias, cartas, reportagens, apelos comunitários — tudo parece escorregar como água em parede. Quando aparecem, os agentes limitam-se a fazer patrulhas simbólicas, em horários previsíveis e ineficazes. Muitos moradores e utentes dos chapas acreditam que há uma rede de proteção — ou de pura negligência — que alimenta o ciclo da violência.
O assalto desta quarta-feira foi mais do que um roubo de peruca. Foi um símbolo. Um espelho partido que reflecte a falência do Estado em garantir o mais básico dos direitos: o de ir e vir com segurança.
Mas o que fazer? Reforçar o policiamento? Sim, mas com honestidade. Instalar câmaras de vigilância? Talvez, mas quem vai monitorar? Criar brigadas comunitárias? Uma possibilidade, embora perigosa num contexto onde a justiça pelas próprias mãos também já matou inocentes.
A verdade, nua e crua, é que entre Ronil e o Ponto Final, Maputo se despede de si mesma. Ali, a cidade revela o seu lado mais cruel, onde os pobres roubam os mais pobres, e o poder se cala enquanto o medo dirige os transportes públicos.
Resta-nos continuar a gritar, mesmo que o grito se perca nas janelas do chapa.