“A Ilha do Diabo” e o herói que vestia coragem no peito

Crónica | Por Bernardo Soares

Há filmes que nos marcam. Há personagens que nos moldam. E há artistas — sim, os chamávamos assim — que carregavam no peito mais do que músculos: levavam nossas fantasias de força, coragem e justiça. Hulk Hugan era um desses artistas. Morreu nesta quinta-feira, 24 de Julho, mas sua imagem permanece tatuada na memória de uma geração que acreditava que bastava gritar como um leão e estufar o peito para vencer o mundo.

Eu o conheci nos inesquecíveis bairros de Quelimane, nos fins dos anos 90, nos bancos improvisados de barrotes de palmeiras. Era uma época em que a vida era simples e mágica: estudar, brincar e assistir filmes. Especialmente os terceiros filmes nos cartazes que desfilavam nas paredes dos clubes — verdadeiros templos da fantasia. Havia o Clube do ZANCO, os Mutilados na zona do Sococô, o Txinguire  – nos confins de Coalane II — e tantos outros espalhados pelos bairros da cidade. Lugares sagrados, geridos por ex-regressados da Alemanha que traziam mais do que lembranças de Berlim: traziam cultura, traziam acção, traziam videocassetes.

E vinham carregados. Literalmente. Carregavam televisores e vídeos amarrados ao colo, embrulhados nas grandes capulanas, como quem carrega um filho, com medo dos feiticeiros do bairro que, diziam, invejavam até as ondas de uma boa antena. Aquelas máquinas de sonhos vinham da África do Sul e faziam a nossa alegria nas noites quentes de Quelimane.

Foi ali, entre gritos da criançada, bancos improvisados de barrotes de palmar, sala cheia de rapaziada que peidavam em segredo que assisti, “A Ilha do Diabo”.

O filme era uma aula de resistência. Uma ode à força bruta com coração. Aprendemos ali que os tubarões atacam quando sentem sangue — licção metafórica que carregamos para a vida. Não podíamos demonstrar fraqueza, não podíamos hesitar. E Hugan nos mostrava o caminho: ao ser mordido por um tubarão, ele não recuava. Encarava a dor, matava a fera com as próprias mãos, e do dente do inimigo fazia um colar que brilhava no peito malhado. Um troféu. Um símbolo. Uma armadura emocional que nos dizia: a dor também pode ser enfeite.

Mas que seria do herói sem vilões?

Billy Drago – mais conhecido por Ramon Cota- era um deles. Calmo, frio, aparentemente inofensivo. Um bandido de fala baixa, terno branco e olhar perigoso. Um gentleman do crime, desses que assusta mais pela serenidade do que pela violência. Ele representava o mal elegante, o perigo que chega com luvas.

Do outro lado, o nosso vilão favorito: Bill Blanks, gabarolas como só ele sabia ser, lutador incansável e dono de frases que nos faziam rir e temer ao mesmo tempo. Era uma mistura rara de inimigo e ídolo. Tinha lutas icónicas com Hugan, e mesmo perdendo, saía com a cabeça erguida, o peito empinado. Ele nos ensinava outra coisa: a derrota não precisa ser humilhação, pode ser estilo.

Hulk Hugan foi mais do que um astro. Foi o herói de tardes barulhentas, de amigos na varanda, de apostas feitas antes da fita começar. A sua morte fecha um ciclo, mas não apaga a chama. Porque quem teve a infância moldada por artistas como ele, sabe que o verdadeiro colar de tubarão é feito de memórias, de resistência e de coragem.

Adeus, Hugan. E obrigado por nos ensinar a morder de volta.

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