Jornalismo ao pormenor

“A Frelimo subestimou a capacidade de resiliência dos moçambicanos”

- Luca Bussotti, sociólogo e professor universitário

Atualmente na Itália, o sociólogo e professor universitário Lucca Bussotti aceitou conversar com o Lupa News sobre a situação actual de Moçambique. Em sua análise, ele aborda o diálogo político em curso para a pacificação do país, o recrudescimento das manifestações e as perspectivas sobre a presença das tropas ruandesas em Moçambique.

Para Bussutti, o Plano de Governação dos primeiros 100 dias do actual governo não apresenta iniciativas reformistas capazes de reduzir as desigualdades entre pobres e ricos. E numa altura em que as manifestações tendem a ganhar um novo impulso, entende que esta situação deve-se ao facto de a Frelimo ter subestimado a “capacidade de resiliência” da população. “Não podemos esquecer qual foi a origem do problema: as feridas representadas por eleições fraudulentas, que o povo moçambicano já não aceita.”

O sociólogo adverte que as manifestações poderão persistir caso essas feridas se mantenham abertas. Em relação à pacificação do país, Bussotti considera que um diálogo sem a presença de Venâncio Mondlane “não vai conseguir estancar o clima de incerteza” no qual Moçambique se encontra mergulhado. Pelo contrário, “ter dois presidentes” só produz um somatório de fraquezas, que se reflectem na situação caótica do país. A seguir a entrevista completa.

 

Por Bernardo Soares

P. Como olha para Plano de Governação dos primeiros 100 dias da Frelimo?

R. Este Plano é, até agora, um pouco misterioso. Na verdade, o desfasamento que se criou com as eleições entre o Executivo e o “povo” é abismal, principalmente com o Venâncio Mondlane completamente fora de qualquer hipótese de colaboração com as tendências reformistas que, em princípio, deveriam animar o novo Governo. Mas de questões essenciais, a partir da reforma dos órgãos eleitorais e de justiça, não vi nenhuma iniciativa, por parte do executivo, assim como no âmbito económico parece-me que o governo esteja a navegar à vista, sem uma estratégia clara finalizada a diminuir a pobreza e a reduzir o fosso entre ricos e pobres.

P. Falando em distanciamento entre o Executivo e o “povo”, as manifestações continuam em alguns pontos do país, com tendências a se intensificar. Que dizer dessa situação?

R. A Frelimo, provavelmente, pensou que o “povo” não tivesse esta capacidade de resiliência e de oposição contra as instituições que está a demonstrar desde Outubro de 2024. Foi um cálculo errado, pois a maioria dos cidadãos querem uma mudança que, inclusivamente, saiu das eleições de 2023 e de 2024. O facto de a Frelimo não ter largado o poder, ou pelo menos o Conselho Constitucional não ter mandado repetir as eleições, deu azo a estas manifestações que cada vez mais estão a se tornar descontroladas e violentas. Mas não podemos esquecer qual foi a origem do problema: as ferida representadas por eleições fraudulentas, que o actual povo moçambicano já não aceita. Se estas feridas se mantiverem abertas, como parece que vai ser para os próximos 5 anos, as manifestações não irão terminar.

P. Venâncio Mondlane tem estado a escalar o país em visitas que arrastam massas, enquanto isso Daniel Chapo vai governando sem nenhum apoio da população. Que significado isso tem para o país, ter dois “presidentes” um informal com poder sobre as massas e outro formal, mas com legitimidade ferida?

R. Conheço apenas um país, no mundo contemporâneo, com dois presidentes: São Marinho, um pequeno país dentro da Itália, onde o governo é regido por uma diarquia. Nenhum outro país do mundo tem um presidente “do povo” e outro “das instituições”. Se, no caso de São Marinho, os dois Capitães Regentes servem como forma de controlo mútuo, cada um dando o melhor de si, tendo legitimidade popular e institucional, no caso de Moçambique acontece exactamente o contrário. Por um lado, Chapo não tem legitimidade popular, por outro VM não tem os poderes institucionais típicos de um estado moderno, o que limita demasiadamente a sua actuação política. Em suma, ter dois presidentes nestas condições produz um somatório de fraquezas, não de forças, facto que se reflecte na situação caótica do país.

P. Mais um encontro decorreu entre o Presidente Daniel Chapo e os representantes de alguns partidos políticos e sem a presença de Venâncio Mondlane. Como analisa esse processo de busca de reconciliação e paz, ignorando o principal actor político da actualidade?

R. Esta é uma questão já bastante antiga. O pressuposto dela é de que a Frelimo quer escolher seus interlocutores. Uma vez que o Venâncio Mondlane não está englobado entre os interlocutores preferenciais, automaticamente ele está sendo excluído. Naturalmente, esta é uma escolha que não tem nenhuma fundamentação política, mas também seria interessante perceber em que sentido pode ser implementado um diálogo entre Daniel Chapo e Venâncio Mondlane. O diálogo devia ser implementado antes da tomada de posse de Chapo, agora com um Presidente da República da Frelimo, um Parlamento com maioria absoluta da Frelimo, um governo composto inteiramente por membros da Frelimo, fica difícil compreender em que termos VM poderia aceitar o diálogo, e sobretudo para fazer o quê, uma vez que tudo já foi decidido pela Frelimo apenas.

P. O PODEMOS diz que o diálogo que o Presidente da República está a efectuar com os partidos para paz, harmonia e desenvolvimento, está num bom caminho. O que dizer deste posicionamento do PODEMOS, tendo em conta que agora é o maior partido da oposição?

R. O PODEMOS é o maior partido da oposição em razão da sua aliança com Venâncio Mondlane. O PODEMOS sem VM, provavelmente, teria conseguido os mesmos resultados das eleições anteriores a que se apresentou. Portanto, dizer que o PODEMOS é o maior partido da oposição é correcto do ponto de vista institucional, mas muito menos em termos políticos, substanciais. Por isso, incluir PODEMOS, MDM, Renamo, ND e outros partidos menores com assentos nas Assembleias Provinciais nas negociações em vista da pacificação do país não faz sentido, excluindo o principal actor político do momento, VM. Trata-se de um mecanismo autoreferencial, que não vai conseguir estancar o clima de incerteza presente no país.

P. O partido PODEMOS reagiu a carta do Venâncio declarando o fim das relações, proibindo-lhe de usar os símbolos do partido, acusando o de incoerente, precipitado, inconsequente, e de agitar o povo. O que dizer da relação entre Venâncio Mondlane e partido PODEMOS?

R. É uma história triste, mas não nova. E digo isso não porque VM já saiu de três partidos, nomeadamente o MDM, a Renamo e agora PODEMOS, embora nunca tivesse feito parte desta formação política, mas porque a oposição, no seu todo, não consegue levar a cabo uma acção comum sequer. Interpreto esta separação entre VM e PODEMOS neste sentido, o que enfraquece ainda mais a oposição, no seu sentido mais global.

P. A Frelimo acaba de eleger Daniel Chapo, Presidente da República, para liderar o partido e Chakil Aboobakar para secretário-geral, deixando de lado Samora Machel Jr. que já tinha manifestado vontade de ocupar este último cargo.

R. A questão da sobreposição entre PR e presidente da Frelimo não me entusiasma, e francamente interessa-me pouco. É verdade, provavelmente, que a Constituição o impede, entretanto, não me parece que seja este o conflito de interesses mais significativo e nocivo para o país. Sobre a eleição do novo SG, também não tenho muito a dizer. O que me parece é que Chapo está tomando as rédeas do partido, em detrimento do antigo grupo dirigente chefiado pela ala Makonde. Mas duvido que esta eleição traga benefícios à Frelimo como partido, e ao país de forma mais geral.

P. Como ficam as relações entre Moçambique e Ruanda com a saída de Filipe Nyusi e a entrada de Daniel Chapo?

R. Uma questão complicada esta. O que sabemos é que o Ruanda tem quase 5000 efectivos no terreno e que, juntamente com o grupo M23, está a ocupar a RDC. Trata-se de um país que “não brinca”. O Chapo deve decidir se faz sentido o Ruanda continuar em Cabo Delgado, ou iniciar uma desmobilização das suas tropas. Mas penso que, a nível de Cabo Delgado, o grupo dos Makondes ainda tenha mais de uma palavra a dizer.

P. Qual é a sua opinião sobre Moçambique como mediador do conflito na RDC tendo em conta que por um lado na RD Congo está o Grupo M23 e, por outro, Moçambique tem “boas” relações com Ruanda, no combate ao terrorismo em Cabo Delgado?

R. É uma hipótese que, na minha opinião, não faz sentido. Primeiro, porque Moçambique está assombrado por uma crise interna sem precedentes, de que não se entrevê o fim; e segundo porque justamente os precedentes com o Ruanda, a gestão da missão SAMIM em Cabo Delgado e as tensões com muitos dos países da SADC, África do Sul em primeiro lugar, não depõem em favor deste papel para Moçambique. (X)

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