Jornalismo ao pormenor

A FEBRE DO “PERDÃO”

Ensaio de Severino Ngoenha, Giveraz Amaral e Carlos Carvalho

Antes mesmo da juventude sul africana se rebelar –  pela voz de Julius Malema –  e questionar  o sentido da transição política, o filósofo desconstrucionista Jacques Derrida interrogara  o processo de reconciliação sul africano. Derrida reconhecia o mérito de ter tirado o país do apartheid – sem o derramamento de sangue pressagiado como inevitável por politólogos e observadores– , mas mostrava o demérito de se ter transformado numa paródia do mesmismo – plus çà change plus c’est la même chose – com os mesmos protagonistas a ocupar os mesmos lugares na escala social: brancos sempre mais ricos e pretos na baixa esfera social – com algumas exceções dos cooptados do ANC.  A partir de então, o apartheid perdeu o signo do biológico para assumir o do económico e, em consequência, liberalisticamente legal e até legítimo.

No seu requisitório Derrida foi até aos arcanos do impasse, a controversa filosófico-ideológica que opusera Mandela e Tutu. Enquanto o primeiro, apesar de apologista  da reconstrução de uma nação multicultural no espírito de Luthuli (uma África de Sul para todos, Negros e Brancos a partir de actualização de principio filosófico endógeno, Ubuntu) postulava a necessidade de uma reparação a favor das vítimas do sistema do Apartheid, o segundo, apoiando-se na Black Theology of Liberation (oriunda de pensadores como James Cone nos Estados Unidos e com afinidades teórico-práticas com a teologia de libertação latino-americana) e contra a postura clássica desde o Aristóteles da Ética a Nicómaco, defendeu, mordicus (obstinadamente), a dissociação entre a reconciliação e a reparação.

O seu paradigma foi a parábola do filho pródigo, através da qual, a transição política devia transformar-se num simples retorno da ovelha perdida (a rica minoria branca) ao convívio geral sem passar, necessariamente,  por nenhum procedimento judicial nem reparação – que se limitou a um efémero empowerment, no sentido de discriminação positiva, teorizado, in primis, por William E. B. Du Bois no início do século XX nos Estados Unidos e timidamente ensaiado, sob forma de  quotas, no Brasil de Lula.

A posição de Tutu prevaleceu e favoreceu, ipso facto, a  permanência do status quo, mas, mais do que isso, por um lado, significou o aumento “legal ” das discrepâncias económicas entre brancos e negros, e, por outro, no acréscimo da área de expansão pós-apartheid, dos interesses dos ex-racialistas – só em aparência convertidos – aos países vizinhos, ulteriormente favorecido pela transmutação da política SADCC para a económica SADC.

 Tanto mais que, apesar da acção destruidora do apartheid ter atingido toda a região, a dita reconciliação ficou confinada intramurus  e, com os boers pretos (Samora Machel)  no poder, praticando um imperialismo regional pior que o dos seus predecessores brancos.

O filósofo esloveno Slavoj Zizek desconfiava que a exaltação de Mandela  como símbolo do humanismo do fim do século XX escondesse uma tramoia: temia que este se tivesse deixado ludibriar (embebedado por estátuas, missas, festivais, concertos por parte daqueles mesmos que foram cúmplices do sistema do apartheid), o que o teria levado a baixar a guarda da vigilância política.

Mandela talvez não tenha pecado por nenhuma soberba ou ingenuidade políticas, mas tenha sido apenas pragmático, no espírito da escola norte-americana que, ao invés das revoluções, preferia as mais realistas reformas – o que pode ter sido reforçado pelos descalabros e involuções económicas e sociais dos processos de descolonização africanas – e maturou a sua convicção de que “natura non facit saltus”, que era impossível obter um mudança pacífica e conservar o nível económico sul-africano  hostilizando os brancos, como era impossível fazer saltar, de chofre, os negros sul africanos (afastados durantes décadas das estruturas económicas e educativas) da pobreza à classe média, e, portanto, entre o desejável e o possível havia um caminho doloroso a percorrer. Interpelado por jovens na sua ultima viagem a Soweto, quanto à igualdade que continuava a ser uma miragem, ele reagiu – numa das raras vezes com irritação – retorquindo: eu não posso fazer tudo.

O equívoco de Mandela foi não ter equacionado que os zumas (e sindicalistas…) – que o acompanhavam na direcção do ANC e deveriam dar continuidade  ao paulatino e árduo trabalho de transformação social – não tinham a sua integridade, os seus princípios e até os seus valores e, por isso mesmo, eram, eles próprios, presas fáceis da cooptação da luxúria, que ninguém sabe dar melhor que a corrupção e as mordomias  do capitalismo.

Em nome da pecúnia, não foram só as expectativas dos jovens sul africanos  que foram  goradas (defraudadas), mas a luta de toda a região. A mecânica pós-apartheid não só acentuou as discrepâncias sociais internas, desta vez sem o ónus racial – já que doravante existiam  também capitalistas e exploradores negros – mas também favoreceu uma maior hegemonia regional do capitalismo racista sul africano em relação a países, que o apartheid tinha brutalizado, e que não foram contemplados no processo da reconciliação (jurídico e de reparação), o que criou um precedente de fácil instrumentalização.

O processo sul africano foi erigido em modelo (até pelas Nações Unidas), mas foi sobretudo  usado para despenalizar e desresponsabilizar opressores por crimes dos quais não estavam sequer arrependidos e que continuavam a cometer de maneiras mais sofisticadas e pós-coloniais. Pegou moda e tornou-se politicamente correcto, pedir perdão pelos crimes cometidos – por outros – sem que isso comporte um real arrependimento, nem sequer um exame de consciência sério sobre as próprias acções.

 Bill Clinton deu um pontapé de saída em Durban, pedindo perdão pela escravatura, o que não impediu aos EUA, durante a sua administração e depois, de continuar a dar a África e os afroamericanos um tratamento diferenciado em relação às outras nações e cidadãos (até chegarmos a George Floyd). A procissão e ladainhas deste perdãocionismo continuou com o rei Filipe da Bélgica a exprimir profundo arrependimento pelo passado colonial no Congo (depois do ministro dos negócios estrangeiros, Louis Michel,  ter pedido desculpas pelo papel dos oficiais belgas no assassinato de  Patrice Lumumba); com o governo de Macron a reconhecer a cumplicidade da França no genocídio  dos tutsis (depois de Jacques Chirac ter assumido a responsabilidade da deportação de judeus para campos de extermínio durante a ocupação nazi);  a Alemanha (que  apoia Israel desde 1952 com milhões, para facilitar a purgação espiritual  de um sofrimento infindável, segundo a expressão Konrad Adenauer) reconhecer que os seus soldado foram responsáveis por massacres de namibianos no séc. XX; e agora é Biden, numa América submersa por supremacistas e sempre mais economicamente desigual, a  decretar, não novas e mais ousadas políticas sociais, mas um ocioso feriado (Juneteenth) para uma – pretensa – reflexão.

O paradoxo e a contradição destas políticas de confessionário é que a libertação política do Haiti (primeiro país  negro independente) e de todos os haitis que se seguiram, implica sempre recompensas pecuniárias para com os ex-esclavagistas, colonizadores, opressores e a África  continua a acumular juros de dívidas e até  das armas que serviram para a própria libertação. Por outro lado, as acções soberanas dos países pobres, percebidas ou julgadas nefastas (ou pecaminosas) a partir do prisma  dos interesses do Ocidente, resultam em retaliações jurídicas (até se criou um tribunal penal internacional que nos é reservado) e económicas; sanções que, apesar de penalizar os mais vulneráveis – mulheres e crianças – tornou-se uma doutrina do modo de relação dos ricos e potentes do Ocidente, para com os pobres e fracos.

A segunda guerra mundial terminou com uma máxima que ficou célebre: nunca mais isto, mas acrescentou-se, entre nós. Os ocidentais decidiram que as barbaridades nazistas, da Segunda Guerra Mundial não deveriam se repetir nunca mais entre eles, doravante regidos pelo Direito e pela tolerância. Mas, extramurus suas atitudes selvagens continuam a ter livre curso. Aliás, os grandes teóricos do novo modo de relação (pós-nazista e belicista) entre os europeus e outros ocidentais, são também os maiores fabricantes e exportadores de armas, de guerras e de morte para o resto do mundo.

O que valem então esses pedidos de perdão, esses reconhecimentos de culpa (mesmo para um cristão como Tutu) sem arrependimento, sanção nem penitência? É fácil demais, sobretudo quando o mal continua a avançar mascarado, em formas diferentes e mais sofisticadas (sistemas económicos de dependência e de ulterior empobrecimento da já paupérrima África, apoio a regimes tirânicos e antidemocráticos, discriminações raciais e sociais sistémicas, fabricação de guerras e deportação de populações, em nome de interesses económicos e financeiros…).

O que  dizer aos deslocados expulsos, manu militari ,de Mocímboa da Praia e Palma e empilhados em Paquitequete?: que socraticamente o mal não existe?; que o seu sofrimento é metafisicamente relativo (Andre Conte-Sponville)?; que são vítimas do mal radical (Kant) que faz passar interesses egoístas (comércio de armas, interesses de gás,  terrorismo, cumplicidade interna) menosprezando a lei moral universal?; que experimentam no próprio corpo apenas a banalidade do mal (Hannah Arendt) operado por indivíduos medíocres (soldados, diplomatas, mercantes, políticos) que, como Eichmann, se limitam a obedecer aos ditames dos novos hitleres (chefes, superiores, sistema, dinheiro)?; ou que esse sofrimento não é um facto moral objectivo  mas a sua subjectiva interpretação d’ele (Nietzsche)?

Talvez seja melhor dizer-lhes: aqueles cujos antepassados escravizaram os vossos bisavós, colonizaram os vossos pais e não são alheios ao vosso sofrimento actual, vos pedem perdão pelo que fizeram aos vossos antepassados e talvez, no futuro,  peçam perdão aos vossos descendentes (se vocês os tiverem e lhes for  permitido sobreviver), pelo sofrimento que vos fazem suportar hoje!

Enquanto decorria a polémica sobre a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, em 1971, o filósofo Vladimir Jankélévitch publicou um texto virulento, L’imprescriptible. Pardonner? Dans l’honneur et la dignité,   em que  rejeita toda forma de absolvição dos crimes nazis e estima que a exterminação dos judeus é produto de uma maldade pura, e que, para ele, os alemães não tinham expressado, até então,  nenhum arrependimento.

Toute proportion gardée, as condições do perdão – pela escravatura, colonialismo e explorações de África e dos africanos – não podem ser levianas; elas exigem uma contrição, um arrependimento e um compromisso sinceros de desnazificar o mundo e estender o pós-nazismo do nunca mais isto à humanidade inteira. O perdão pressupõe a adesão incondicional aos princípios de uma justiça, não de resgate, de esmola ou de sofismas jurisdicionistas – que, como diz Paul Ricoeur, adicionam violência à violência – mas costureira, capaz de cozer, (re)costurar relações humanas quebradas por séculos de violência. Se para isso forem necessárias engenharias económicas, financeiras  e sociais, que seja; mas não podem ser nem o essencial nem se podem fazer Economias –  nem delas, nem com elas.

Trata-se, para o Ocidente, de assumir existencialmente (Heidegger),  que se faz humanidade (Sein mit andaren) com os outros; que ele (o Ocidente) é, porque os outros (todos os outros) também são (John Mbiti).

Este é o sentido profundo do Ubuntu, no qual Mandela e Tutu convergiam.

ensaio de Severino Ngoenha, Giveraz Amaral e Carlos Carvalho

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